UMA CENA NÃO COTIDIANA
 

Em dias de bestas soltas, quando o ser humano nem sempre é mais visto como tal – tamanha insensatez dos “semelhantes” – depararmos com gestos nobres, são momentos raros.
 
Felizmente, ainda há aqueles que ousam driblar a apatia, como fez o protagonista da cena que presenciei, de um ônibus, na tarde de 11 de janeiro de 1993, defronte ao Teatro Castro Alves, em Salvador.
 
Na pista paralela à do teatro, parou um coletivo distante do calçadão. Dele, desceram várias pessoas e, por último, uma senhora negra, bem vestida, de presumíveis cinquenta anos, andando com certa dificuldade, amparada a uma bengala.
 
Por alguns instantes, titubeou na pista, atarantada. No entanto, um moleque de rua, raquítico, trajando apenas um calção sujo, descalço, teve a iniciativa de parar o fluxo de carros e ajudá-la na travessia até o passeio do referido teatro.
 
Fosse esse alguém um transeunte qualquer, o gesto não deixaria de ser humanitário, tornou-se, todavia, mais emocionante porque, além do autor do belo espetáculo nem perceber a grandeza do seu ato, seria mais fácil prever que o mesmo “puxaria” a bolsa daquela pobre senhora – cotidiana cena em nossas metrópoles.
 
Pois bem: Neste mundo, onde bestas soltas nos rodeiam diuturnamente, aqueles que muitas vezes aparentam sê-las – como agora – acabam nos dando lição de vida e de cidadania.
 
P.S.: Esta crônica foi publicada na seção Espaço do Leitor do Jornal A Tarde (Salvador, BA), do dia 17/1/1993. Publicada, também, no Jornal Cultural - Blocos, Ano II -10, Fev/Mar/93 (Rio de Janeiro, RJ).