Cicatrizes

Foi como tomar um murro na boca. Pra quem já brigou no colégio e já teve a infelicidade de ser esmurrado na face, acho que passo a ideia do quão impactante foi para mim a visão que tive hoje de manhã quando adentrei o banheiro.

Calma lá, não é nada disso que vocês estão pensando. Na verdade, é muitíssimo pior. Hoje quando me acordei e me olhei no espelho, percebi que quem me encarava ali já não era a mesma pessoa de antes.

Encarei aquele rosto pálido e desanimado e logo me senti alarmado. O que aconteceu com você, rapaz? Onde foram parar as suas palavras de ordem e os seus ideais? Que fim levou a sua vontade de mudar o mundo? Cadê a sua coragem? E, para comprovar as minhas suspeitas, o rosto amedrontado que me mirava cabisbaixo nada respondeu. E então eu percebi que já não sou mais o mesmo de outrora. Hoje eu sou um tremendo covarde. Assustador, não?

Incrível como o tempo correu e eu fui perdendo pelo caminho toda a minha força de vontade, todas as minhas ideias acerca de melhorar tudo para todos ao meu redor. Aconteceu tão gradativamente que eu sequer me dei conta. Só percebi hoje porque a diferença já era gritante. No decorrer dos tempos, parece que o meu ser foi ficando mais pesado e, para poder seguir viagem, eu acabei por ir me livrando das coisas que me pareciam mais árduas de se carregar. Creio que primeiro eu perdi o me importar com o próximo. Aos poucos eu fui começando a acreditar que eu devia cuidar de mim primeiro, que o jogo é “cada um por si e Deus por todos”. Logo em seguida, deixei na estrada, juntando poeira, a minha coragem para encarar o desconhecido. Nem percebi que havia abandonado o meu destemor frente aos desafios que me apareciam. Fui ficando mais medroso, menos crédulo da minha capacidade de superar os desafios a mim impostos. E conforme este receio ia crescendo, ia ganhando massa e ocupando espaço, mais e mais dos meus ideais foram ficando pelo caminho, até que, hoje de manhã, o resultado de todo esse medo me encarou do espelho e me sobressaltou. E agora eu me pergunto: quando foi que eu fiquei assim?

E me parece meio óbvio que isso tudo só aconteceu porque eu não soube aceitar as coisas que me aconteceram. Coisas ruins, para falar a verdade. Não há nada mais natural no mundo do que se ter experiências. Enquanto vivendo e convivendo, você acaba se expondo a interações que vão lhe gerar um ou outro acontecimento marcante, não importando se este será bom ou ruim. E quando algo bom acontece, você regojiza-se e decide continuar adiante. Mas o efeito é muitíssimo breve. Felicidade é um estado de espírito que só nos aflige por um curto espaço de tempo. O grande problema são as coisas ruins. Quando algo não tão bom nos acontece, a tendência é que nós desaceleremos nossos passos, tentando superar a dor do que quer que tenha nos acontecido. E se essas coisas ruins se sucedem, nós acabamos por parar. Nós ficamos estagnados em um determinado ponto, remoendo a dor que ainda sentimentos e avaliando feriadas de dores do passado. E essa sessão de sado-masoquismo acaba por tomar conta do nosso ser, ocupando o espaço que, por direito, seria das coisas boas. E muitos de nós, como foi o meu caso, não conseguem se livrar desse vício. Até que um dia se olham no espelho e percebem-se frente-a-frente com um completo desconhecido.

As coisas ruins que foram me acontecendo acabaram por me fazer focar-me somente nelas e esquecer de todo o resto. Deixei de lado minha bagagem, minhas companhias e minhas distrações, dedicando minha vida única e exclusivamente para as dores que agora eu cultivava com um sinistro carinho. E foi necessário um baque fortíssimo para me retirar deste torpor.

Quando penso nisso que me aconteceu, me lembro de uma frase de um dos, no meu ponto de vista, maiores e mais mal interpretados filósofos de todos os tempos: Jesus Cristo.

Calma lá, meu amigo ateu. Não precisa fechar a página desta crônica, eu não vou tentar convertê-lo. Até porque eu mesmo não sou lá muito crédulo quando o assunto é religião. Mas eu quero que você esqueça o homem que as pronunciou e foque-se apenas nas palavras em si. Em determinado momento de sua jornada, Jesus Cristo, incitado por seu povo que clamava por um líder que os libertasse do julgo dos Romanos, viu-se em uma situação tal que, pode-se dizer que estava entre a cruz e a espada. Acontecia diante de si um confronto entre judeus e romanos e ele chegara para tentar apaziguá-los. Um dos soldados romanos, vendo-o, encheu-o de chacotas e, para completar, deu-lhe um murro na face. O povo, exaltado, gritava para que Jesus empunhasse uma espada e, com o poder de Deus, dizimasse seus inimigos. Mas Jesus, do auge de sua sabedoria, apenas disse para os que estavam a seu redor: “Se alguém os agredir, dê a outra face”.

Posso ser sincero? Acho que ninguém entende muito bem o que ele quis nos dizer. Mas eu tenho uma tese. Quando ele diz “dê a outra face”, ao contrário do entendimento geral, ele não quer dizer que você deva levar um soco no outro lado do rosto ou algo do gênero. Nada de continuar apanhando simplesmente para não ter motivo para bater. O que ele quis nos dizer foi o seguinte: supere.

“Como assim?” Foi isso que você pensou, não é? Pois bem, eu lhes explico. Se alguém lhe ferir, esqueça a cicatriz e continue vivendo. É tão simples e tão genial. Quando alguém lhe faz mal, você normalmente se vê em uma encruzilhada. Se você revidar, pode gerar uma briga que terá perdas muito grandes para ambos os lados. Se você mostrar medo, pode acabar por ser humilhado ou ser ainda mais atacado. Então, o que se deve fazer? Bem, você deve simplesmente superar. Ninguém precisa saber que você está ferido, que foi esmurrado ou coisa do gênero. Guarde essa cicatriz para si próprio. Pense no que levou a ela e no que ela representa. Mas em momento algum você deve expô-la ou considerá-la mais importante do que a lição que ela significa.

Quando alguém te atacar, não revide, não fuja, não chore. Apenas absorva o que aconteceu, dê a outra face, a face que ainda estiver intacta, que ainda demonstra o seu controle e a sua força de vontade e, sem se abalar, siga em frente.

Foi isso que eu entendi das palavras do suposto filho de Deus. Que nós não devemos supervalorizar as coisas ruins que nos acontecem. Que nós não devemos passar a viver somente para as nossas cicatrizes. Que nós não precisamos mostrar para todo mundo que estamos feridos. É bem simples e de fácil aplicação. Se algo de ruim me acontecer, eu aceitarei e, assim que possível, superarei. Simples assim.

Foi disso que eu havia esquecido enquanto caminhava e via coisas ruins me acontecendo. Foi disso que eu lembrei quando me vi amedrontado na frente do espelho. E foi isso que eu decidi. Que eu não vou mais idolatrar as feridas que em mim figuram. Daqui para frente, guardarei-as para mim e, para o mundo, vou mostrar a outra face. A face que eu havia esquecido. A face que ainda vai mudar o mundo. A face que me faz sentir um orgulho egoísta ao ser vista no espelho. E com um sorriso, devo dizer.