Os amigos que fiz na vida.
Os amigos que fiz na vida.
O meu primeiro amigo foi um rio...
Tinha um nome majestoso que os colonizadores lhe deram, como se a escarnecer dele, a substituir o antigo nome indígena: rio Real. Eu passava horas dentro dele, quando ainda morava em Tobias Barreto, (que ainda se chama Vila de Campos, perdida na causticante fronteira entre os estados de Bahia e Sergipe) sempre com uma varinha surrupiada de um arbusto qualquer, a medir a força esquálida de sua corrente.
Eu não confiava muito nos meninos de minha idade, menos ainda nos mais velhos, um dos quais atirou-me neste mesmo rio Real, no qual quase dei fim a minha história, ainda tão curta, num quase afogamento em que fiquei a me debater por minutos que mais me pareceram horas. (nesta época eu não contava com mais de seis anos de idade)
O fato de não confiar nos meninos para ocupar e dividir o meu tempo fazia-me buscar amigos impessoais, dos quais o primeiro foi o rio Real, como deixei registrado acima.
Tempos depois apareceu em minha vida um cantor incomparável: um galinho garnizé no qual coloquei o nome de Zé Pedrês, em alusão as listras multicoloridas de suas penas. A minha amizade com o Zé Pedrês começou logo que ele saiu do ovo chocado pela mãe dele, uma galinha bojuda da qual não me lembro o nome agora, só sei que ela fazia um estardalhaço danado quando ponha um ovo, e deduzo que quando ela pôs o ovo que daria origem ao meu amigo Zé Pedrês toda a cidade ficou sabendo, pois a sisuda galinha ficou a cantar por mais ou menos umas quatro horas, tão feliz se sentia.
Eu estava a postos quando o Zé botou pela primeira vez o biquinho prá fora do ovo em que se encontrava, junto com mais uns nove outros ovos. Sempre fazia expedições ao canto aonde as galinhas chocavam, mesmo sob o risco de enfrentar mamães galinhas furiosas a defender os seus ninhos, por isso vi aquele pintinho todo amarelinho tentando terminar de arrebentar a casca daquele ovo.
Depois de uma árdua batalha, finalmente aquele que viria a ser o meu amigo Zé Pedrês conseguiu terminar a tarefa de criar uma abertura para deixar o seu ovo-casa e sair todo se sacudindo desajeitadamente para o quintal. Sua mãe logo me mostrou as suas armas de defesa, ameaçando-me com algumas bicadas e fazendo com que eu me retirasse do espaço que considerava vital para os seus filhotes.
Como acabei de descrever, esta foi a gênese da minha sólida amizade com o Zé Pedrês, amizade que foi posta a prova quando o clã do qual eu fazia parte decidiu que o Zé deveria servir de almoço, me obrigando a sair a campo para evitar que o meu lindo cantor Zé Pedrês viesse a virar uma vulgar galinha de cabidela, suprema humilhação para um galo que era a virtuose do terreiro.
Já imaginaram que desastre: além de ser abatido ainda perder a majestade de ser galo para virar galinha, mesmo sendo uma galinha de cabidela?
Não deixei mesmo acontecer tal vilania com o meu amigo cheio de penas...
Bem, continuando a lista de meus amigos nada convencionais, devo confessar que fiz uma amizade que poucos humanos, meninos ou mesmo a gente grande, teriam coragem de fazer.
Essa amizade inusitada foi, literalmente, uma amizade do outro mundo, daquele mundo que ninguém quer ir: antecipando em muito o universo dark, fiquei amicíssimo de um cemitério tabaréu; (um daqueles cemitérios de gente que não podia pagar lápide nos campos santos das cidades) tropecei com esse meu novo amigo no caminho para a fazenda de meu tio João Curvelo, o meu tio Joãozinho.
Ele, ou melhor, ela, era denominado "a Maria do Mato" mais uma antecipação (um cemitério transgênero) feita pelos matutos.
Menos mal que este cemitério caboclo tinha um nome feminino, o que lhe dava um certo charme, um ar de modernidade vindoura, como já notifiquei acima. Nossa amizade foi longa. Durou desde o primeiro dia em que me sentei em um de seus banquinhos de pau e fiquei ali a respirar por longas horas aquela atmosfera tranquila, rescendendo a flores de juremeiras e juazeiros, até quando passei lá pela ultima vez, antes de nos mudarmos para Gongogi, no Sul da Bahia.
Quando cheguei ao Sul da Bahia o meu cenário de vida mudou completa e radicalmente: deixei para trás o calor sem fim dos sertões da Terra Vermelha e do Tabuleiro para me extasiar com a luxuriante vegetação da Zona da Mata cacaueira.
Já contava então com dez anos de idade, época em que fiz amizade com o rio Gongogi, que só tinha em comum com o rio Real o fato de ambos serem rios. O Gongogi, apesar de ser um afluente do rio de Contas, ao contrário do rio Real que era um rio principal, era bem mais farto em águas, (com pleno merecimento de ser chamado de rio em alto e bom som) portentoso mesmo. Suas águas límpidas e suas enchentes poderosas faziam-me encolher de admiração e temor, o que fez com que eu me sentisse atraído para aprender a nadar e enfrentar a grandiosa tarefa de desvendar seus muitos segredos.
Comecei a me aproximar do meu novo e gigantesco amigo aos poucos, bem de mansinho como a gente faz com chamego novo: de início apenas me segurando em suas margens, mãos grudadas nos lajedos para ir me acostumando com sua profundidade, que em alguns trechos atingia mais de vinte metros.
Como num passe de mágica me vi nadando dentro de suas águas, mergulhando nelas e sentindo outra vez como devia ter sido bom ser protegido dentro do útero de minha mãe.
Era assim que eu me sentia quando mergulhava no rio Gongogi: como se retornasse para dentro do líquido amniótico, onde nada do mundo externo me ameaçava.
Dentro das águas do rio Gongogi aprendi a desenvolver uma enorme capacidade de me manter submerso, conseguindo atingir, às vezes, mais de dois minutos ausente do mundo e de seus habitantes, muitos deles produtores de terror e medo.
Juntamente com o rio, em Gongogi, fiz outra amizade sólida: uma cerca que dividia o terreno aonde ficava a nossa casa, fazendo fronteira, de um outro terreno que o meu avó convenceu meu tio Jaime (morador de São Paulo) a comprar.
Acho que o fator determinante para mais esta amizade feminina foi o fato dela, dessa minha amiga cerca, ser de madeira, e o amarrio (feito com cipós) dela me lembrar as antigas cercas amarradas de cipó das roças de minha parentela lá das bandas da Terra Vermelha.
Pelo sim pelo não, era para a minha amiga cerca que eu falava das minhas tristezas e desventuras, principalmente das carraspanas verbais que tomava de meu avô Raimundo Curvelo. Este meu parente era especialista em xingamentos, e parecia sentir especial prazer em descarregar a sua verve sobre aquele moleque magricela que atendia pelo nome de João Bosco.
Era ser xingado por ele e lá ia eu para junto da cerca, ao lado da qual eu elaborava planos mirabolantes para me escafeder daquela reinventada forma de tortura medieval cujo executor era o pai da minha mãe.
Quando eu fiz quatorze anos mudei-me para Itabuna, uma cidade bem maior, deixando para trás, mais uma vez, meus dois amigos: (desta feita os de Gongogi) o rio, meu companheiro de folguedos, e a cerca, amiga das horas de aflição, em que todo o Universo parecia querer conspirar contra mim.
Estes meus quatro amigos, o rio mais magro e rio o mais gordo, o galinho Zé Pedrês e a cerca de nossa casa em Gongogi, moldaram a minha personalidade e tornaram-me muito mais introspectivo, e também mais resistente às intempéries vindas dos amigos humanos que não consegui fazer...
...e que quase nunca consigo entender.
São José dos Campos, manhã de Domingo, último do mês de Junho de 2010
João Bosco