Apesar do dia nublado e do frio, que entraram saltando as janelas, deu bom dia e boas-vindas ao imediato da vida, para o que o coração se abriu um tanto desconfiado. Então, agora que o primeiro passo já fora transposto, era preciso, com extremada calma, descobrir o melhor jeito e lugar para apoiar o outro pé e entrar, de vez, na novíssima realidade do dia seguinte.
Dois caminhos se abriam à frente. Dois caminhos mais curtos, porque era preciso vencer a distância entre o dantes e o atualmente de maneira segura, sem se deixar envenenar pelas serpentes dissimuladas, entocadas por todos os lugares da memória. Não se deixar prender pelos cipós fortuitos, quase invisíveis, das aparências e muito menos se encantar com as piritas do vasto garimpo das esperanças.
Uma primeira trilha teimava. Apesar do curtíssimo intervalo entre ela e aquelas coisinhas rosas e brancas, que a afastariam por longo tempo de todas as ameaças, havia o perigo do abismo que se seguia. Dormir, hibernar feito uma ursa gorda e só, talvez lhe rendesse algum esquecimento, mas e depois? Quando chegasse a primavera, estaria curada? Acordaria feliz?
A outra trilha, a outra se manifestava com menos cores, mas era, apesar disso, mais alegre. Bastava se permitir alguns balangandãs, uma máscara bem produzida e, seria a festa! Talvez fosse mais fácil cair na armadilha da farsa, da alucinação que repetia astutamente: nenhuma coisa aconteceu de tão grave que não possa ser contornada, transposta e, enfim, resolvida. Cumprir o ritual e sair para o mundo. Estaria lá o tal – ser feliz?
À hora certa, o coração em risco, se pôs em alerta. Olhou bem para todos os lados. Dele, ainda, só havia uma parte dela. Talvez não fosse tão difícil evitar os precipícios. Carecia vencer o ímpeto das marés que a faziam transbordar de medo e dor diante de cheiros, digitais, sons. As marés, as marés não são permanentes, então... Poderia não ser fácil, mas era possível. Era preciso, também, vencer as adivinhações, deixar que o futuro se engalanasse, pouco a pouco, no rendado próprio dos acontecimentos e respeitar essa sua parte ainda sem muito prumo, ainda amolecida e delicada. Respeitar-se. Recompor com ternura o amor-próprio, torná-lo fresco e viçoso. O amor-próprio deixado de lado por longo tempo, que tremia ante o inevitável renascimento.
O caminho seria mais longo. Muito mais longo! Sim, seria, mas teria beijos mais doces, abraços mais intensos e inesperados carinhos. Como os de hoje, da manhã fresca, inundada de perspectivas e sopros de outros ventos.