PEDAÇOS DA MINHA INFÂNCIA - PARTE V
A mana Isabel tinha 1 ano e picos e estávamos no Quela.
1957
Havia uma roça de café a poucos kms que era a delícia de muitos. Árvores frondosas, riachos, café (claro) e as instalações dos trabalhadores e a residência do responsável por tudo aquilo. Essa casa era baixa, comprida, telhado de zinco. O chão era de cimento tingido de vermelho e encerado. A D. Cândida, muito jovem e bonita, era do melhor que havia: fazia uns queques deliciosos e biscoitos de canela como só ela. A qualquer altura a que chegássemos havia sempre doçuras!
Uma vez fui lá passar uns dias com eles e os filhos, um casalito muito aprumadinho e educado. Foram dias maravilhosos. A Dª. Cândida conversava comigo, contávamos filmes uma à outra, líamos à vez os livros de LUISA MARIA LINARES e CONCHA LINARES PECERRA, ensinou-me a bordar a ponto cruz mas com preceito... Ensinou-me a fazer os queques... Os filhos deles andavam atrás de mim como se de cachorrinhos se tratassem. Só anos e anos mais tarde percebi que tanta devoção se devia ao facto de ser a única adolescente num raio de centenas de kms. Quanto ao facto de eu ser a única adolescente em "centenas" de Kms, claro que não era bem assim: Malange estava apenas a 100 mas era como se fossem centenas na prática: eles estavam ilhados na "Fazenda Lu-Handa" (com o H aspirado) - Era uma roça mas chamava-se fazenda... Era assim: "Vamos à Roça do Sr. Malheiro?" ou "Vamos à Fazenda Lu-Handa?" (Que nem era nada do Sr. Malheiro. Ele era só o encarregado). Eles não iam a Malange com muita frequência.
E a pobre D. Cândida sofria de solidão! A Mamã Raquel costumava ir lá visitá-la mas era sempre entrada por saída. Os Papas Lacerda e Malheiro davam-se muito bem.
Passear na roça era divinal! O cheiro da humidade dos riachos, do capim, das flores, do café quando amadurecia... Do fumo que vinha da sanzala trazendo o odor do funge (pirão)... Hummm... Até agora me cresce água na boca!
A uns poucos kms da roça havia um recanto saído de um contos de fadas: um dos ribeiros terminava formando um laguinho bastante profundo lá para o meio. As margens eram arenosas mas com o mato logo a seguir.
Por vezes os Papás resolviam ir lá passar o dia e as Mamãs preparavam cestos e cestos de farnel para a malta se orientar. Levavam-se cobertores e as alcofas para graúdos e miúdos poderem dormir belas sonecas. E iam também baralhos de cartas porque os Papás andavam com a mania da Canasta, mania essa que transmitiram à filharada.
O Papá Lacerda e o Papá Malheiro, já fartos desses dias "sensaborões", resolveram arranjar um barco para levar as criancinhas de um lado para o outro no laguinho. As criancinhas não acharam graça nenhuma pois lhes fazia lembrar as horríveis viagens onde as refeições só estavam dentro deles o tempo suficiente para darem a volta e saírem...
O Papá Lacerda, feroz e eficiente caçador (Parte I...) achou por bem desafiar o Papá Malheiro a comprarem linha, chumbos e anzóis. (Não compraram canas porque nessa altura ainda não haviam sido inventadas em Malange embora o tivessem sido no resto do mundo.)
E assim o terrível caçador se transformou em destemido pescador!
Aqui para nós que ninguém nos lê, o Papá Lacerda (que se lembre a sua primogénita, eu) só pescou o dedo mindinho da sua mão esquerda; mas isso foram muitos anos depois e já em Moçâmedes, no Porto do Saco.
E um belo domingo, depois de muitos preparativos científicos para a confecção das canas, a pescaria teve início depois de muitas recomendações e bitaites das Mamãs!
O Papá Lacerda, de calções de caqui e camisa desfraldada ao vento (que não havia), capacete colonial no toutiço (que nunca largava - excepto para o banho, cama e mesa) estava belíssimo! Parecia um dos exploradores, qual Capelo Ivens, sei lá!
O Papá Malheiro estava mais modesto: calções de caqui, camisa desfraldada ao vento e capacete colonial no toutiço...
Um belo par de jarras!
Cada um empunhou um remo com muita perícia. Positivamente, arrastaram o barquito para o meio do lago. Largaram os remos e prepararam os apetrechos de pesca não se esquecendo de espetar, com requintes de malvadez, as pobres minhocas que se contorciam, nos anzóis enquanto na margem as criancinhas gritavam com dó dos pobres bichos.
O Papá Lacerda levantou-se, empunhou a cana, rodou-a sobre a cabeça soltando fio e lançou... E foi borda fora atrás da cana, do fio, do anzól, dos chumbos e das minhocas...
Convém aqui informar os leitores, que o Papá Lacerda era tão bom nadador como era caçador e pescador!
Do mestre pescador só o capacete estava à tona... vazio. Na margem as Mamãs gritavam, a criançada dava saltos de aflição.
Nisto, o topo da cabecinha aparece na água. O Papá Malheiro, valentemente, pega num remo e estende-lho e... Zás! Valente traulitada no toutiço e lá vai o Papá Lacerda outra vez por água abaixo!
Volta o desgraçado a surgir da água, agora já com mais balanço depois da pancada e fez glu-glu e levou outra vez na carola!
Na margem vivia-se um momento único: os saltos e os gritos rivalizavam com qualquer cerimónia pagã de dança ao Deus do Lago!
Pela terceira vez a cena se repete. O chinfrim era tal que os patos que moravam por lá começaram a responder em altos grasnados e depois, já assustados, alçaram voo com estardalhaço... (mal sabiam eles que o Papá Lacerda já tinha planeada uma caçada aos patos do lago... Não haveria de ser grande o problema pelo que sabem dos seus dotes de caçador, mas imaginem que o Papá Malheiro tinha pontaria? )
Finalmente o Papá Lacerda foi pescado do lago depois de muita luta: vestido e calçado e molhado...
Voltámos ao Quela sem peixe, muito roucos depois de tanto gritarmos mas com o nosso Papá resgatado das salsas ondas...
Foi nesse dia que vimos o nosso primeiro DISCO VOADOR! Mas isso é outra HISTÓRIA..."
Beijinhos,
A mana Isabel tinha 1 ano e picos e estávamos no Quela.
1957
Havia uma roça de café a poucos kms que era a delícia de muitos. Árvores frondosas, riachos, café (claro) e as instalações dos trabalhadores e a residência do responsável por tudo aquilo. Essa casa era baixa, comprida, telhado de zinco. O chão era de cimento tingido de vermelho e encerado. A D. Cândida, muito jovem e bonita, era do melhor que havia: fazia uns queques deliciosos e biscoitos de canela como só ela. A qualquer altura a que chegássemos havia sempre doçuras!
Uma vez fui lá passar uns dias com eles e os filhos, um casalito muito aprumadinho e educado. Foram dias maravilhosos. A Dª. Cândida conversava comigo, contávamos filmes uma à outra, líamos à vez os livros de LUISA MARIA LINARES e CONCHA LINARES PECERRA, ensinou-me a bordar a ponto cruz mas com preceito... Ensinou-me a fazer os queques... Os filhos deles andavam atrás de mim como se de cachorrinhos se tratassem. Só anos e anos mais tarde percebi que tanta devoção se devia ao facto de ser a única adolescente num raio de centenas de kms. Quanto ao facto de eu ser a única adolescente em "centenas" de Kms, claro que não era bem assim: Malange estava apenas a 100 mas era como se fossem centenas na prática: eles estavam ilhados na "Fazenda Lu-Handa" (com o H aspirado) - Era uma roça mas chamava-se fazenda... Era assim: "Vamos à Roça do Sr. Malheiro?" ou "Vamos à Fazenda Lu-Handa?" (Que nem era nada do Sr. Malheiro. Ele era só o encarregado). Eles não iam a Malange com muita frequência.
E a pobre D. Cândida sofria de solidão! A Mamã Raquel costumava ir lá visitá-la mas era sempre entrada por saída. Os Papas Lacerda e Malheiro davam-se muito bem.
Passear na roça era divinal! O cheiro da humidade dos riachos, do capim, das flores, do café quando amadurecia... Do fumo que vinha da sanzala trazendo o odor do funge (pirão)... Hummm... Até agora me cresce água na boca!
A uns poucos kms da roça havia um recanto saído de um contos de fadas: um dos ribeiros terminava formando um laguinho bastante profundo lá para o meio. As margens eram arenosas mas com o mato logo a seguir.
Por vezes os Papás resolviam ir lá passar o dia e as Mamãs preparavam cestos e cestos de farnel para a malta se orientar. Levavam-se cobertores e as alcofas para graúdos e miúdos poderem dormir belas sonecas. E iam também baralhos de cartas porque os Papás andavam com a mania da Canasta, mania essa que transmitiram à filharada.
O Papá Lacerda e o Papá Malheiro, já fartos desses dias "sensaborões", resolveram arranjar um barco para levar as criancinhas de um lado para o outro no laguinho. As criancinhas não acharam graça nenhuma pois lhes fazia lembrar as horríveis viagens onde as refeições só estavam dentro deles o tempo suficiente para darem a volta e saírem...
O Papá Lacerda, feroz e eficiente caçador (Parte I...) achou por bem desafiar o Papá Malheiro a comprarem linha, chumbos e anzóis. (Não compraram canas porque nessa altura ainda não haviam sido inventadas em Malange embora o tivessem sido no resto do mundo.)
E assim o terrível caçador se transformou em destemido pescador!
Aqui para nós que ninguém nos lê, o Papá Lacerda (que se lembre a sua primogénita, eu) só pescou o dedo mindinho da sua mão esquerda; mas isso foram muitos anos depois e já em Moçâmedes, no Porto do Saco.
E um belo domingo, depois de muitos preparativos científicos para a confecção das canas, a pescaria teve início depois de muitas recomendações e bitaites das Mamãs!
O Papá Lacerda, de calções de caqui e camisa desfraldada ao vento (que não havia), capacete colonial no toutiço (que nunca largava - excepto para o banho, cama e mesa) estava belíssimo! Parecia um dos exploradores, qual Capelo Ivens, sei lá!
O Papá Malheiro estava mais modesto: calções de caqui, camisa desfraldada ao vento e capacete colonial no toutiço...
Um belo par de jarras!
Cada um empunhou um remo com muita perícia. Positivamente, arrastaram o barquito para o meio do lago. Largaram os remos e prepararam os apetrechos de pesca não se esquecendo de espetar, com requintes de malvadez, as pobres minhocas que se contorciam, nos anzóis enquanto na margem as criancinhas gritavam com dó dos pobres bichos.
O Papá Lacerda levantou-se, empunhou a cana, rodou-a sobre a cabeça soltando fio e lançou... E foi borda fora atrás da cana, do fio, do anzól, dos chumbos e das minhocas...
Convém aqui informar os leitores, que o Papá Lacerda era tão bom nadador como era caçador e pescador!
Do mestre pescador só o capacete estava à tona... vazio. Na margem as Mamãs gritavam, a criançada dava saltos de aflição.
Nisto, o topo da cabecinha aparece na água. O Papá Malheiro, valentemente, pega num remo e estende-lho e... Zás! Valente traulitada no toutiço e lá vai o Papá Lacerda outra vez por água abaixo!
Volta o desgraçado a surgir da água, agora já com mais balanço depois da pancada e fez glu-glu e levou outra vez na carola!
Na margem vivia-se um momento único: os saltos e os gritos rivalizavam com qualquer cerimónia pagã de dança ao Deus do Lago!
Pela terceira vez a cena se repete. O chinfrim era tal que os patos que moravam por lá começaram a responder em altos grasnados e depois, já assustados, alçaram voo com estardalhaço... (mal sabiam eles que o Papá Lacerda já tinha planeada uma caçada aos patos do lago... Não haveria de ser grande o problema pelo que sabem dos seus dotes de caçador, mas imaginem que o Papá Malheiro tinha pontaria? )
Finalmente o Papá Lacerda foi pescado do lago depois de muita luta: vestido e calçado e molhado...
Voltámos ao Quela sem peixe, muito roucos depois de tanto gritarmos mas com o nosso Papá resgatado das salsas ondas...
Foi nesse dia que vimos o nosso primeiro DISCO VOADOR! Mas isso é outra HISTÓRIA..."
Beijinhos,