Idiomas Estranjeros
Idiomas Estranjeros
Quantas vezes o amigo leitor, ou amiga leitora, não se deparou com algum sujeito de sotaque sulenho, aqui, neste lado das Américas, dizendo: ‘Volte ao seu país! Você mal fala nosso idioma!’
Pois bem, do mesmo modo que o assalto virou frequente no Brasil, algo fixo, de datas esporádicas quase demarcadas, e atração turística obrigatória, assim também se tornou este apelo preconceituoso do lado dos gringos contra tudo o que se move e respira nascido em outros lados da fronteira, ou aqui mesmo, mas que se pareça menos com Clark Gable e Sharon Stone. Eis, no entanto, minha vingança. O relato a seguir é verídico, perguntem ao meu colega Abe Surdo, que ouviu tudinho.
Retirada do sitio Midia Independente (CMI Brasil, clique aqui)
Foi n’um dia como hoje, Domingo ensolarado, manhã de orvalho fresco trepidando do topo das folhas, dos arbustos e pequenas árvores, das flores e suas múltiplas cores, na boca dos alfastos da urbe miamense. Aparece um sujeito estranho pela porta do mercado, e começa a fuçar as prateleiras. Sem impingir açoite, apenas olhavamos curiosos, pois ninguém reconhecia o cumpá. Ali estava, alvo e alto, o pouco de cabelo grisalho remontava suas orelhas e se interligava com os pêlos deste orifício, claro indicador de sua passada meia idade. Do bolso traseiro de sua bermuda se via a cópia do Herald dominical, a sessão de classificados de automóveis, e não é que o sujeito usava luvas, ou melhor, aquele equipamento cujo nome científico me foge à memória para que o ciclista acostumado a longos trajetos em circuitos aventurosos, traqueando, não machuque muito as palmas de suas mãos? Calçava o par clássico de tênis brancos, daquele das três pirâmides formando uma, ou lôgo parecido, sem meias, pernas mais enrugadas do que seres pré-historicos, como o papo de uma lagartixa. Óculos escuros encobrindo metade de sua face, uma alegoria ao homem mosca, e uma fina camada de protetor solar revestindo as bochechas.
‘Pois não,’ oferecia Bruno, o dono do mercado.
‘Yes, I want...’
‘Quê, quê, quê, o que tu qué, meu senhor, tá me tirando?’
‘???’
‘Ih, ó lá, o Brunão se enfezou dessa vez...’ E nesta declaração de Alfredinho, todos se reuniam na boca do caixa a conferir o fuxico.
‘I don’t understand, I...’
‘Shhhhhhh, shá! Qué isso! Chama a polícia, nove-um-um, disca aê!’
Cliente desentendendo questiona:
‘Qué isso, o quê, Brunão, que escândalo, o moço só ia fazer uma pergunta,’ dizia procurando acalmar o gringo com o canto dos olhos e meio sorriso.
‘Eu não falo essa lingua dele, tá pensando o quê? Aqui na minha tenda se fala Português, tá entendendo? Português!’
‘But, I...’
‘Bati, nada, amigo, quem vai bater sou eu!’
(Gritos desenfreados): ‘Segura o Bruno! Pelo pescoço não!’
‘I’m calling the police!’
‘Tá vendo, Brunão? Ele vai chamar a polícia, qué que tu vai fazê?’
‘Deixa ele chamar, deixa ele chamar! Nove-um-um!’
De seu bolso sem fundo, depois de alguns calmos segundos e sobrancelhas erguidas acima do nível de seus gigantescos óculos escuros, retirou o gringo um celular e discou o número. Não disse dez palavras, e desligou sorridente.
‘Now, you’ll see! They’re coming.’ E cruzou os braços em gesto de esperança.
Passados três minutos entra à venda um policial, jovem, moreno e bem falado na vizinhança, melhor conhecido por Tio Bolacha, pelos caroços nas bochechas, sempre iludindo quem com ele se deparasse de que mastigava bolachas de maizena pelos cantos da boca.
‘Yes, sir, thank you for coming, here they are!’ Dizia o gringo, incompreensível, mas contente. Tio Bolacha, ou oficial Alberto, Mister Albert, apenas fitou o senhor e cumprimentou, entusiasticamente, ao dono do mercado.
Bruno trocou palavra e outra com o policial, correu ao outro canto da venda, trouxe consigo uma sacola de papel, aparentemente recheada dos produtos favoritos de dona Carolina, a mãe de Alberto, cumprimentaram-se novamente e foi-se embora o oficial, porta afora.
‘Hey, hey! Aren’t you gonna take care of me?’
Oficial de Justiça Alberto apenas parou por um instante sua caminhada porta afora, sorriu e retrucou:
‘I just did... Pedi pra eles não te matarem, e se for bater, não deixar marcas.’
O gringo não entendeu a parte que entendemos, e nós não entendemos a parte que o gringo entendeu, ou disse, em vias de fato. Antes de se retirar da venda, indignado, quase chorando, ainda teve de ouvir de Bruno as desagradáveis palavras:
‘Volte ao seu país, gringo!’ Que teve de retrucar apenas aos próprios ouvidos: ‘Mas, estamos em Pompano Beach...’
Dias depois, ainda traumatizado por suas ocorrências em Pompano, diz-se do gringo que viajou a Los Angeles, e encontrou um hotel afastado da grande metrópole, e perto deste, um boteco, algo inédito para ele, e neste boteco um bando de pessoas aparentemente simpáticas, e uma atendente além de simpaticamente sorridente, linda, a quem ousou pedir um copo de café:
‘I would like a...’
‘Shhhhhhh shá! Devuelvete a tu país, pendejo! Orale, cabron! A hablar idiomas estranjeros en mi património!’
RF
(Publicado no BrTvOnline, 4/9/2006, www.brtvonline.com, todos os direitos reservados)