PEDAÇOS DA MINHA INFÂNCIA - PARTE IV
Já a década de 50 ia alta e o papá Lacerda estava colocado no Quela, a 100kms de Malange.
O Quela era um luxo: tinha escola, médico, enfermeiro... Padre não tinha mas havia uma Missão relativamente perto e... pois... era o suficiente. E... pasmem: tinha um motor barulhento que era ligado à tardinha e desligado às 23 e assim as nossas cavernas eram iluminadas! E também as ruas, estão a ver?
Era outro paraíso! O clima estupendo, paisagens de tirar o folgo, perto de Malange onde os meus pais de vez em quando iam ao cinema (oh Fernando! Sabes que filme estará este fim de semana em Malange? Não? Mas sei eu: é "Sissi, Imperatriz da Áustria"! - O papá Lacerda anuia e lá iam eles.), hortas verdejantes, roças de café e A Baixa do Cassange, a maravilha suprema!
Na Baixa do Cassange cultivava-se algodão.
Para se ir para a Baixa seguíamos por uma estrada que tinha uma certa zona...(sobre isto falo noutra altura!) e passávamos por um Miradouro construído à beira da falézia com pilares por onde se enrolavam trepadeiras que faziam caramanchão; por baixo dele uma enorme mesa com bancos corridos tudo em cimento. E sabem o que se fazia por lá? Brutas churrascadas, claro! A poucos metros, num pequeno morro, havia um Forte que mais parecia um aldeamento de Reserva de Caça. Lindo! O Forte de Cabatuquila, o Miradouro chamado de Varanda de Pilatos.
Do Miradouro via-se a Baixa. Um espanto, podem crer: Kms e Kms a perder de vista. Dias houve em que estando no Miradouro, com sol, se assistia de balcão a duas ou três tempestades distintas na Baixa! E tínhamos direito a arco-íris e tudo...
Com zonas tão diversificadas pertencendo ao Distrito de Malange, decidiu o Sr. Governador fazer uma Exposição Feira onde cada Concelho apresentaria, em pavilhão, o que de mais característico houvesse por lá.
O papá Lacerda reuniu com os Chefes de Posto do seu Concelho no sentido de unirem esforços e apresentarem um pavilhão digno de tão linda região. Claro que haveria o café, o algodão, os frutos, as madeiras trabalhadas em lindas peças, e que sei eu mais. Não sei de quem foi a brilhante ideia de se construir, no pavilhão, um mini-zoo mas estão já a imaginar onde os animalitos estavam estacionados desde que foram capturados até ao dia da inauguração. No nosso quintal, pois então! A mamã Raquel teve de desalojar as suas queridas galinhas Island Red para outras instalações e lá iam chegando desde herbívoros a COBRAS!
Foi uma época alucinante! Que comeriam os bambis? Qua dar às cobras? E à tarde, depois da escola, lá íamos todos apanhar umas vagens de umas árvores que bordejavam as ruas e que nós, contrariados, tínhamos de ir dar aos bambis, às gazelas...( eram doces e queríamo-las para nós). Do resto da bicharada alguém se encarregaria, claro.
A mamã Raquel levou-nos várias vezes a Malange para nos mandar fazer as fatiotas à modista (escolher e comprar os tecidos, tirar medidas, escolher os feitios dos vestidos das meninas, fazer as provas... escolher e experimentar sapatos a condizer... Nessa altura éramos só 7 ainda).
Uns dois dias antes do início da Feira os animais foram transportados em várias carrinhas (os senhores comerciantes ajudaram na tarefa) para Malange onde o Sr. Governador disponibilizou as capoeiras dele.
A família avançou também na última viagem e ficou alojada onde sempre ficava, numas vivendas perto do Palácio onde era hábito ficarem os funcionários.
Dia da Inauguração: os pavilhões estavam construídos, os artefactos e bens da terra já nos seus lugares, só faltavam os bichinhos. Uma azáfama a transportá-los e a instalá-los. Tudo numa boa.
Mas para trás ficou O Bambi que o papá Lacerda não confiava a ninguém e que ele fez questão de levar na cabine da carrinha ao seu colo passando o volante ao seu Secretário. E lá foram eles todos lampeiros pela cidade fora em direcção ao sul do Bairro Azul onde era a Feira. Numa curva mais apertada o papá Lacerda desiquilibra-se, O Bambi assusta-se e esperneia e com uma patita bate no fecho da porta e... lá se foram Bambi e Papá Lacerda porta fora!
Do Bambi não se ouviu mais falar!
O papá Lacerda estampou-se de encontro ao passeio e... o Sr Secretário levou-o ao Hospital onde ele foi generosamente pintalgado com mercúrio e alguns pensos. Nada partido.
Em casa, a mamã Raquel com a ajuda da primogénita (eu) vestiu e despiu e voltou a vestir a malta jé em desassossego. Como havia sempre um bebé, provavelmente amamentou várias vezes o indez. Estava preocupada, a desgraçada.
Do papá Lacerda não havia notícias (ainda não tinham inventado os telemóveis naquela zona nem em zona nenhuma).
A hora marcada para a inauguração aproximou-se, chegou e partiu e nós ali. E eis que aparecem os valentes trabalhadores.
-"Então, Fernando? Tiveste um desastre a conduzir?" -"Não. Foi o Pereira que..."
-"Oh seu malvado! Então vai fazer ISTO a um homem que não faz mal a ninguém?"
E fez mensão de se atirar ao desgraçado julgando que ele teria batido no papá Lacerda...
-"Não, não... ele não fez nada..." - balbuciava o Cristo com a boca toda inchada.
Um braço ao peito, inchado e vermelhusco e foi fardado com a ajuda da chorosa esposa. Ficou lindo, o papá Lacerda, de farda de gala, limpa e engomada e BRANCA!
A Família Lacerda fez uma entrada triunfal no recinto da Feira!
Estava o Sr Governador Geral e todas, todas as figuras colunáveis da época! Um show! A RTP, acabadinha de nascer na Metrópole, enviou jornalistas para fazer a cobertura do evento...
O Sr Governador Geral teria perguntado ao seu Secretário:
-"Que colégio é aquele que chegou agora com a sua professora?"
Um beijinho,
Teresa
PS - Esqueci-me de vos dizer que as meninas iam todas de igual (vestido de bordado inglês com gola redonda e lacinho azul-escuro, sapatinho de verniz e meia branca) e os rapazes também! (calção azul escuro, camisa branca, lacinho azul escuro, sapatinho de verniz e meia branca)... Imaginação não faltava à mamã Raquel...