FILHOS, FILHOS...
Era muito comum ver nas casas das cidades do interior um quadro inusitado na parece. Um pensamento poético em molduras de diferentes tipos. Eu, menino de pouca idade, mas já alfabetizado me encantava com as palavras e me assustava um pouco com o apelo que elas traziam (imaginava) para os pais. Começava assim: “ vossos filhos não são vossos filhos. São filhos da ânsia da vida por si mesma...” Mal sabia eu que as proles daquele tempo tinham que, em algum momento, desgrudar-se das asas protetoras de seus ninhos e irem buscar um sonho ou , no mínimo uma forma de ajudarem a construir o que os pais iniciaram. Era, ao mesmo tempo um desapego consolado que os pais encontravam naquelas palavras e uma espécie de aviso aos filhos:
“Olhem, meus filhos, leiam tanto quanto puderem esses ensinamentos e, chegada a idade certa, busquem seus caminhos que nós daqui continuaremos velando por vocês ; amor não lhes faltará, mas a continuidade de criação se dará por conta própria.”
Não sei se tinha esta lógica racionalizada. Sei é que me alterou para sempre.
Gibran Khalil Gibran escreveu um texto/poema que para a minha infância e depois adolescência, foi uma coisa que deixou uma marca, a princípio incompreendida. Só viria a entender o motivo muito mais tarde. Agora, nesses tempos quem que a filharada anda cada vez mais grudada nos pais ou sem muita perspectiva de buscar uma independência, com medo da rua, do trabalho e da vida, eu reforço ainda mais o que sinto com relação ao significado que os pais têm na vida dos filhos e vice-versa.
Da minha infância para cá, no entanto, muita coisa mudou.
As famílias já não são tão numerosas;
Os pais não são mais tão repressores;
Os sonhos mudaram de rota: de idealismo abstrato, vontade de mudar o mundo, passamos para uma espécie de idealismo material, vontade de, literalmente, comprar o mundo. Para isso, basta apenas trabalhar e juntar dinheiro. Não sair da casa dos pais nesse aspecto é um motivo a mais de economizar;
A violência urbana ganhou contornos assustadores, o que aumentou o temor dos pais de soltarem seu filhos tão cedo na vida;
A desconfiança e a intolerância estão fazendo com que os filhos, mesmo depois de casados não se distanciem muito dos pais, afinal, em muitos casos, são eles que vão cuidar dos netos enquanto os pais garantem o sustento no trabalho. Quando a gente vê babás espancado crianças na TV, acho que isso assusta um pouco.
“Filhos, filhos,melhor não tê-los, mas se não os temos, como sabê-los?” já questionava o Vinícius de Moraes em outro poema que ele chamou com deliberado deboche metafórico de Poema Enjoadinho. No entanto, o mesmo Vinícius (se redimiria depois?) compôs O Filho que eu Quero ter, numa afirmação em que escancarou o desejo paternal.
O resumo dessa ópera toda é o permanente estado de inquietação que acomete a gente quando se para pra pensar o que é mesmo que estamos fazendo aqui no mundo além de viver o momento presente, esquecer o passado e não divagar sobre o futuro. Pelo menos comigo é assim, com todo o respeito com o que pensa cada um e suas particularidades.
----------------------------------------------------------
GIBRAN KHALIL GIBRAN
“Vossos filhos não são vossos filhos.
São os filhos e as filhas da ânsia da Vida por si mesma.
Vêm através de vós, mas não são de vós.
E embora convivam convosco, não vos pertencem.
Podeis outorgar-lhes o vosso amor, mas não vossos pensamentos,
Porque eles têm seus próprios pensamentos.
Podeis abrigar seus corpos, mas não suas almas;
Pois suas almas moram na mansão do amanhã, que vós não podeis visitar nem mesmo em sonho.
Podeis esforçar-vos por ser como eles, mas não procureis fazê-los como vós;
Porque a vida não anda para trás e não se demora com os dias passados.
Vós sois os arcos dos quais vossos filhos são arremessados como flechas vivas.
O Arqueiro mira o alvo na senda do infinito e vos estica com toda Sua força para que Suas flechas se projetem, rápidas para longe.
Que vosso encurvamento na mão do Arqueiro seja vossa alegria:
Pois assim como Ele ama a flecha que voa, também ama o arco que permanece estável.”
-----------------------------------------------------------
POEMA ENJOADINHO
(Vinícius de Moraes)
Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
Banho de mar
Diz que é um porrete...
Cônjuge voa
Transpõe o espaço
Engole água
Fica salgada
Se iodifica
Depois, que boa
Que morenaço
Que a esposa fica!
Resultado: filho.
E então começa
A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!
-----------------------------------------------------
O FILHO QUE EU QUERO TER
(Vinícius de Moraes)
É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer
Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter
Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem
De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde vim
Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim
Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem
Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu
E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus
Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter