Banho a dois
Todo cronista, ou melhor, todo escritor, ou melhor ainda, todo aquele que cria (se é que, mães à parte, se crie algo nessa vida) corre um tremendo risco de plagiar, inadvertidamente, coisas já ditas. E a cena que quero comentar é tão comum que talvez já tenha sido objeto de linhas por aí afora. Mas, se a gente for grilar nisso, não olha nem pro teclado. Vamos nessa. Vamos falar do homem e seu carro, num momento muito íntimo: o banho a dois.
Agudamente, ontem, estando eu no recesso maternal de minha rede de balanço, observei, coçando o cavanhaque, que tem algo misterioso, algo subentendido no ato do homem que, com esmero, num domingo à tarde, lava seu automóvel.
Eu, cujo carro vive meio desmantelado, demorei anos pra sacar o caráter pouco cristão daquela iteração.
Se não me engano, o ritual do motorista era mais ou menos assim:
Quando em superfícies planas, descrevia amplos movimentos retilíneos, indo e vindo longamente, o corpo debruçado em ponte, atento, olhar fixo – não fosse aquilo um capô, juraria ser uma bela barriguinha em decúbito dorsal. Quando perto das curvas e quinas, se detinha em movimentos circulares, demorados, a mão num feitio erótico e possessivo, a cara toda na curva, a língua entre os dentes, os olhos apenas entreabertos, concentradíssimos.
Cá e acolá se levantava e, de frente pros faróis, olhava o conjunto da obra. Humildemente, encarava os olhinhos marejados do carro fêmea e, como sentisse ali um sinal de insatisfação, voltava a alisar a pele brilhante, retrabalhando, indo e voltando em incessantes preliminares.
Subitamente, cadê o cara?… Via-se apenas suas duas pernas sob o chassi, os pezinhos balançando, e se poderia jurar que a máquina se derramava em cócegas libertinas. Saía, embotado de secreções oleosas, mudava de lado, continuava.
Depois, com um respeito quase eclesiástico, abria o porta-malas, remexia por lá, um tanto constrangido, mas logo satisfeito e introduzido até a cintura na intimidade ordinária do espaço antes vazio.
Ao cuidar do motor, franzia o cenho e, com a cara acurada de um psicanalista, mão no queixo, braços semicruzados, decompunha as idéias em limpeza, peça por peça, pose ante pose, até que, como encarando uma sentença filosofal, fechasse o capô e batesse as mãos, solene, vitorioso.
Da limpeza interna, daquelas partes que sem tem pessoais e mais caseiras (onde se senta, se passa o tempo, as crianças são botadas), nada vi, salvo os resíduos que atirava fora, que macheza a gente ostenta, mas roupa suja se lava na intimidade.
Enfim, obra completa, carro lânguido e homem cansado, ele liga o motor, sai e acende um cigarro. As fumaças sobem. Encaram-se longamente.
Bituca no chão.
Num suspiro, num soluço, numa decepção antecipada, ele assume o volante e ganha a rua, já sentido no coração a lástima das impurezas com que o mundo sujará o que lhe vale tanto apego.
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