A COLEIRA


               Quem diria Malu assim às travas?
               Doce e submissa baixou a cabeça e recebeu feliz a coleira... Uma coleira arrematada por um lindo sol, cunhado em metal do artesão da praça. Era uma tarde de temperatura amena e ela seguia embevecida aquele que a segurava pela mão, aquele que a abraçava com ternura e a fazia sentir-se viva e olhar a velha paisagem com novos olhos.  Era como se aquela rua tão familiar pudesse de repente oferecer perspectivas inusitadas,  algo como vir vindo do alto para o chão em pouso inesperado.   Parecia-lhe estar  a percorrer pela primeira vez aquele chão, ou quem sabe a retornar de um tempo longínquo em que estivera fora,  um hiato enorme deixando entre parênteses  grande parte da sua história e  partindo de um ponto remoto em que olhara o mundo com esperanças, olhos muito jovens...  Sentiu-se estrangeira em sua prórpria casa e teve vontade de dizer ao rapaz que ela também era de longe,  tanto desejava pertencer ao mundo daquele que entrara em sua vida e permitira a ela ver-se novamente refletida e inteira, olhando fundo naquele par de olhos amorosos.      
                 Malu  pôs a coleira ao pescoço como um ato de rendição. Mas uma rendição à vida,  à aceitação de uma felicidade ainda a seu alcance.  Secretamente vivenciou a cena como um ritual de entrega, materializada naquele cordão preto com um lindo sol copiado da bandeira da Argentina pelo moço simples e falante. Este, animado com a atenção recebida,  revelou ser seu trabalho  uma herança do pai, provavelmente um daqueles pioneiros artesãos  dos saudosos anos sessenta e setenta,  tempos  cantados por Claiton e Cledir... " anos setenta, não deu pra ti, e nos oitenta eu não vou me perder por aí..." 
                  A velha Praça da Alfândega é ainda o ponto alto da Rua da Praia, que teve seus dias de glória por ela testemunhados.  Percorreu sua pele aquela aragem fria que trouxe a imagem distante:  menina vindo direto do "mato", aonde jogava bulitas e tinha como os guris a sua "funda", andando   com a prima da mesma idade e a tia, as três usando luvas   para passear na Andradas.   Depois e depois, a vida indo em frente... encontro com namorado na Reitoria, baile de calouros, uma noite em um barzinho com seu primeiro bebê, loucura... depois mais filhos, mais praça e Parque da
 Redenção... hoje, somente Redenção.  Na cabeça de Malu se misturam décadas, que ela já as viveu algumas... melhor esquecer... apóia a cabeça no ombro dele, uma aconchego quente, manso, inesquecível tarde...o agora é tudo que possui...e a coleira...
                 A coleira tem usado sempre... com aquele lindo sol da bandeira da Argentina, aquecido junto ao seu coração... tudo assim como ela sempre viveu, uns centímetros acima do chão, um pouco real, um pouco literatura... e muita, muita intensidade... o agora é tudo que possui, sabe disso como nunca e reedita o livro de sua vida em dois capítulos apenas: o que viveu até aquela tarde e o presente, com letras mais brilhantes, coloridas, com muitas notas ao pé da página feitas de  exclamações, suspiros, lágrimas...
                Em suas lembranças escuta um bonde passar com estrépito.  Estremece de leve,  e o que ouve é o ronco das turbinas de um avião levantando vôo. O presente se descortina em um céu muito claro desta fria manhã.  Enquanto vai rumo ao ponto de embarque, fica atrás de si aquela que se desfaz nas brumas do tempo e na qual ela já não se reconhece mais. O sol entre as mãos por instantes, até o metal aquecer...  
tania orsi vargas
Enviado por tania orsi vargas em 24/06/2010
Reeditado em 24/06/2010
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