PEDAÇOS DA MINHA INFÂNCIA - PARTE II
Início da década de 50.
O papá Lacerda colocado em Cacolo como administrador dos Quiocos, entre Saurimo e Malange, vivia feliz e contente entre a administração e as sanzalas e a colecta dos impostos e a tentativa (frouxa) de convencer uns quantos mancebos a oferecerem-se como "voluntários" para as minas da Diamang no Dundo e a orientar umas quantas queimadas "controladas" e a promover o recenciamento e a vacinação da varíola (e não sei que mais) (quem se lembra das brigadas da Pentamidina? ) e a sua casa.
Tão feliz estava que se recusava a pedir transferência para uma terra mais desenvolvida... Cacolo não tinha médico, nem padre, nem escola...
A mamã Raquel que se esforçava desesperadamente em orientar uma casa cheia de crianças e os milhentos funcionários que lhe caíam no prato porque se diziam e estavam em trânsito e ainda não tinha sido "inventado" o avião para aquelas bandas e chegavam por terra e arrasados de dias e dias de viagem com mulheres, sogras e filhos pedia-lhe desesperada que pensasse na dita transferência até porque a Teresinha (eu), estava em idade de ir para a escola. Que não, que estava muito bem ali, que o clima era óptimo, que havia muita caça, que os funcionários eram porreirinhos, que as crianças andavam à vontade...
A mamã Raquel que fizera o curso comercial há pouco tempo (casara-se com 16 anos) e ainda tinha as matérias muito frescas decidiu ensinar a sua primogénita a ler e a escrever.
E assim foi: com resmas de papel almaço e lápis vários e mais tarde com caneta de aparo e um tinteiro que o papá Lacerda trouxe da administração ensinou a criança(eu) a ler e a escrever (todas as regras gramaticais de que se lembrava - e eram muitas) e também as tabuadas e as contas e problemas daqueles das torneiras etc... e Geografia e História de Portugal. E tão entusiasmada andava que quase deu o curso comercial à cachopa (eu) que ia aprendendo tudo julgando que era assim mesmo!
Quando achou que sim, que a rapariga (eu) já lia e etc, foram a Saurimo e inscreveram-na para fazer os exames da 1ª à 2ª e da 2ª à 3ª em regime de ensino doméstico e no dia afixado lá foram todos na carrinha que dessa vez até funcionou. ( Nessa altura faziam-se exames em todas as classes, lembram-se? )
Corria o ano de 1953.
Claro que a rapariga (eu) fez uns exames belíssimos e ao fim do dia resolveram regressar a Cacolo pela fresca.
Feitos vários kms, o ajudante da carrinha que ia de farolim ligado a baterias, bate na capota a assinalar caça. O papá Lacerda emocionado, trava e salta ligeiro (também ele era um rapazito...) e pega na espingarda para prover a nossa gruta de carne fresca! A recém-examinada (eu) estava em pulgas: a sua 1ª caçada!
O Xico dizia:
"Patrão, é um veado e vem para a estrada, para a frente do carro".
O papá Lacerda corre para a frente do mesmo e espera. Um belíssimo veado cruza a estrada em saltos elegantes e o destemido caçador dispara... e não acerta.
O Xico grita:
"Patrão! está a dar a volta no mato e vai passar por trás da carrinha!"
E lá vai o caçador aos saltos apanhar o veado quando ele passasse pela estrada. O veado passou, o caçador disparou e não acertou.
E o Xico grita:
"Patrão! está a dar a volta no mato..."
E nova correria para a frente da carrinha... E novo disparo e nada! E na cabine a mamã Raquel e a filha (eu) riam-se às gargalhadas!
"Passem-me cartuchos e não façam barulho que me espantam a caça!" gritava o caçador. Os cartuchos seguiam viagem mas não acertavam...
O caçador desistiu de correr para a traseira da carrinha quando se apercebeu que a caça voltaria para a parte da frente, aí para a 5ª ou 6ª volta...
Depois foi o descalabro total: que tivessem contado (no meio da risota, dos gritos por cartuchos e pedidos de pouco barulho) foram mais 17 voltas que a criatura deu ao carro!!! E eis que à 17ª volta contada, o veado dá o tal salto elegante pela estrada e cai redondo na valeta depois do tiro!
Gritos e vivas e felicitações!
Aproximaram-se do bicho e não havia sinal de bala...
Nunca souberam de que tinha morrido: de susto, ataque cardíaco ou exaustão.
A recém-examinada (eu) recusou-se a assistir à autópsia, a comer nem que fosse uma febra e nunca mais quis ir a caçadas...
Beijinhos,
Início da década de 50.
O papá Lacerda colocado em Cacolo como administrador dos Quiocos, entre Saurimo e Malange, vivia feliz e contente entre a administração e as sanzalas e a colecta dos impostos e a tentativa (frouxa) de convencer uns quantos mancebos a oferecerem-se como "voluntários" para as minas da Diamang no Dundo e a orientar umas quantas queimadas "controladas" e a promover o recenciamento e a vacinação da varíola (e não sei que mais) (quem se lembra das brigadas da Pentamidina? ) e a sua casa.
Tão feliz estava que se recusava a pedir transferência para uma terra mais desenvolvida... Cacolo não tinha médico, nem padre, nem escola...
A mamã Raquel que se esforçava desesperadamente em orientar uma casa cheia de crianças e os milhentos funcionários que lhe caíam no prato porque se diziam e estavam em trânsito e ainda não tinha sido "inventado" o avião para aquelas bandas e chegavam por terra e arrasados de dias e dias de viagem com mulheres, sogras e filhos pedia-lhe desesperada que pensasse na dita transferência até porque a Teresinha (eu), estava em idade de ir para a escola. Que não, que estava muito bem ali, que o clima era óptimo, que havia muita caça, que os funcionários eram porreirinhos, que as crianças andavam à vontade...
A mamã Raquel que fizera o curso comercial há pouco tempo (casara-se com 16 anos) e ainda tinha as matérias muito frescas decidiu ensinar a sua primogénita a ler e a escrever.
E assim foi: com resmas de papel almaço e lápis vários e mais tarde com caneta de aparo e um tinteiro que o papá Lacerda trouxe da administração ensinou a criança(eu) a ler e a escrever (todas as regras gramaticais de que se lembrava - e eram muitas) e também as tabuadas e as contas e problemas daqueles das torneiras etc... e Geografia e História de Portugal. E tão entusiasmada andava que quase deu o curso comercial à cachopa (eu) que ia aprendendo tudo julgando que era assim mesmo!
Quando achou que sim, que a rapariga (eu) já lia e etc, foram a Saurimo e inscreveram-na para fazer os exames da 1ª à 2ª e da 2ª à 3ª em regime de ensino doméstico e no dia afixado lá foram todos na carrinha que dessa vez até funcionou. ( Nessa altura faziam-se exames em todas as classes, lembram-se? )
Corria o ano de 1953.
Claro que a rapariga (eu) fez uns exames belíssimos e ao fim do dia resolveram regressar a Cacolo pela fresca.
Feitos vários kms, o ajudante da carrinha que ia de farolim ligado a baterias, bate na capota a assinalar caça. O papá Lacerda emocionado, trava e salta ligeiro (também ele era um rapazito...) e pega na espingarda para prover a nossa gruta de carne fresca! A recém-examinada (eu) estava em pulgas: a sua 1ª caçada!
O Xico dizia:
"Patrão, é um veado e vem para a estrada, para a frente do carro".
O papá Lacerda corre para a frente do mesmo e espera. Um belíssimo veado cruza a estrada em saltos elegantes e o destemido caçador dispara... e não acerta.
O Xico grita:
"Patrão! está a dar a volta no mato e vai passar por trás da carrinha!"
E lá vai o caçador aos saltos apanhar o veado quando ele passasse pela estrada. O veado passou, o caçador disparou e não acertou.
E o Xico grita:
"Patrão! está a dar a volta no mato..."
E nova correria para a frente da carrinha... E novo disparo e nada! E na cabine a mamã Raquel e a filha (eu) riam-se às gargalhadas!
"Passem-me cartuchos e não façam barulho que me espantam a caça!" gritava o caçador. Os cartuchos seguiam viagem mas não acertavam...
O caçador desistiu de correr para a traseira da carrinha quando se apercebeu que a caça voltaria para a parte da frente, aí para a 5ª ou 6ª volta...
Depois foi o descalabro total: que tivessem contado (no meio da risota, dos gritos por cartuchos e pedidos de pouco barulho) foram mais 17 voltas que a criatura deu ao carro!!! E eis que à 17ª volta contada, o veado dá o tal salto elegante pela estrada e cai redondo na valeta depois do tiro!
Gritos e vivas e felicitações!
Aproximaram-se do bicho e não havia sinal de bala...
Nunca souberam de que tinha morrido: de susto, ataque cardíaco ou exaustão.
A recém-examinada (eu) recusou-se a assistir à autópsia, a comer nem que fosse uma febra e nunca mais quis ir a caçadas...
Beijinhos,