Menino da Mina
Quatro horas da manhã. Quem andasse pelas ruas do Berra lobo, com certeza, percebia barulho vindo das cozinhas daquelas casas. Eram as esposas dos homens da Mina, preparando a marmita para mais um dia de trabalho. Minha mãe era uma delas.
O cheiro da comida exalava em toda casa. Quantas vezes acordávamos com aquele cheiro gostoso incomodando os nossos estômagos insaciáveis.
Com desculpa para saborear a sobra, gritávamos lá do quarto: Bença Mãe. Bença Pai! A resposta era sempre a mesma: Deus te abençoe meus filhos! Imagine seis meninos querendo ser abençoados. Era a estratégia que usávamos.
Assim que nosso Pai seguia para o ponto para aguardar o caminhão de turma, “O Manda Brasa”, saíamos desembestados em direção à cozinha para verificar se sobrou algo. Sabendo disso, nossa mãe sempre deixava uma panela cheia de mexido no canto do fogão a lenha. Os mais velhos eram espertos, como sempre levavam vantagens.
Outra lembrança que não sai da minha mente era o dia em que tínhamos de colocar o caderno no Armazém da Mineradora. Nossa mãe nos acordava bem cedo para enfrentar a fila do Armazém para fazer o deposito do caderno do mês. Chamávamos de caderno, a lista de compras do mês. No armazém podíamos comprar arroz, feijão, banha, açúcar, sabão, fubá, farinha de trigo, de milho, de mandioca, batata e sal.
Ali também havia outras repartições com os nomes de boteco, açougue e loja. Era possível fazer compra naquelas repartições caso sobrasse ponto. Ponto era o valor consignável que cada empregado possuía. Comprava-se no boteco, café, biscoito, massa de tomate, sardinha macarrão. Nem sempre havia ponto, devido o mesmo ser usado nos alimentos essenciais. Jamais sobrou ponto para comprar na loja.
No açougue, encontrávamos apenas carne de segunda. A carne de primeira era reservada para médicos, engenheiros e chefes. Raramente sobrava carne de primeira para os empregados comuns. Embora nosso pai pertencesse à classe de chefia, a quantidade de carne que tínhamos o direito de comprar era insuficiente para tantas bocas a serem alimentadas. Por tais motivos outros irmãos dirigiam-se à Chácara do Zé Sergio, onde estava localizado o Matadouro da Mineradora. No local, também era necessário enfrentar uma grande fila. Ali era doado, fígado, pé de boi, barrigada, miolo, costela, rabada. Tinha gente que dormia na fila!
Com chuva ou sem chuva, nas manhãs geladas ou quentes, naquelas Ruas de chão vermelho, uma vez por mês era o mesmo ritual.
Cada família tinha seu cachorro. Lembro-me o nome de alguns por serem bravos: lango, pirata, til, leão, feroz, zorro, bandido, valente, titiu, charuto.
Meu Deus!
Quanta recordação!
Nas imediações do armazém sempre havia briga entre os cachorros do Berra lobo, com os cachorros do Campestre e do Explosivo. Para separar era uma dificuldade! Os donos dos cães acabavam envolvendo em brigas. Sentiam ofendidos quando o seu cão apanhava. Aí a coisa ficava feia!
Éramos vigiados pela equipe de segurança da Mineradora. Caso a briga fosse violenta, nossos pais eram chamados para resolver a situação. Por tais razões criou-se o Grupo de Escoteiro Padre Olimpio para que, os filhos dos empregados apreendessem noções de cidadania e boas maneiras. Caso não concertássemos éramos encaminhados ao Zé Sergio lá na Chácara. Homem valente e temido por todos.Ex-combatente da Segunda Guerra Mundial. Ai o bicho pegava!
Às sete horas, a porta do armazém era aberta, momento em que depositávamos o caderno. Às dez horas a chamada era realizada. As matriculas dos empregados recebiam o nome de chapa. Os atendentes do armazém em alta voz diziam o número de cada chapa e o nome do empregado. “Chapa de numero 920, 923, 110 etc.” Triste era o dia em que o atendente gritava bem alto, “Não tem ponto” Quer dizer, não era permitido fazer as compras.
Muitas vezes ouvimos os atendentes gritando a chapa 960 do nosso Pai, Não tem ponto. Sentíamos constrangidos. Voltávamos para as nossas casas tristes. .Quando isso acontecia, nossa mãe tinha uma saída! Fazia a compra do mês no armazém do Bento, lá no ponto dos aflitos, pertinho da boca da mina.
Nossas vidas eram difíceis. A família era composta de onze pessoas. Sempre havia uma empregada acompanhada com filho morando conosco ou uma lavadeira que sempre trazia os seus filhos. A casa sempre estava cheia de primos, tias, e nossos avôs. Era muita boca para se alimentar. Sempre havia alguém na porta pedindo ajuda. Nossa mãe tinha o dom da partilhava. Mesmo diante de toda dificuldade a mesa sempre foi farta.
No quintal, não faltava um porco engordando, uma horta bem cuidada e muitas galinhas.
Era uma festa o dia em que se matava um porco. Feriado familiar! Não íamos à Escola. Cinco horas da manhã Sr. Joaquim dos Reis ou Sr. Argemiro estavam apostos no chiqueiro para promover a matança. Assim que ouvia o derradeiro grito, as vizinhas iam chegando para ajudar a preparar o choristo, a lingüiça, fritar os torresmos e as demais carnes. Lá pelo meio dia tudo estava pronto. No final, cada vizinha levava para a casa um pedaço da carne. Era um tempo de partilha, fazia-se a política da boa vizinhança. Nos festejos, na doença, nos momentos de perda, todos estavam juntos. Havia sim, brigas entre vizinhos, entre crianças e cachorros, mas também havia respeito e consideração.
Ficou muita saudades daquele tempo em que podíamos chamar cada vizinho pelo nome, compartilhar os momentos difíceis, chorar e festejar juntos.
Hoje resta boa lembrança daquelas Ruas vermelhas do Campestre, Berra lobo e Explosivo.
Ficou também uma imensa saudade, e uma bela amizade.