PEDAÇOS DA MINHA INFÂNCIA - PARTE I
Não nasceram de geração espontânea em Cacolo. O Papá Lacerda foi lá colocado depois da sua 1ª Graciosa à Metrópole já com 3 dos seus muitos rebentos.
O regresso de Portugal fez-se de barco desde Lisboa até Luanda como é suposto ter sido. Viagem miserável em que o barco se recusou a estabilizar em qualquer dos sentidos. Se a do ano anterior tinha sido má, essa foi pior pois o factor novidade não estava presente. Sabem como são as viagens de barco, não sabem? O chão, misteriosamente, ganha vida e luta contra tudo e todos que se atrevam a tocar-lhe. E são saltos e solavancos, e... "agora sacudo para a esquerda e agora para a direita e eu, barco, não me divertia a ver-vos ficar verdes e amarelos quais bandeiras brasileiras..."?, mas agora é para cima e cá vamos nóóós para baixo...
A família aumentara em número não porque lhes tivesse nascido outro bebé mas porque a avó Ilda os acompanhou na aventura africana.
Luanda à sua espera, linda como sempre, mas pouco tempo lá estiveram. O suficiente para perderem o ar de bandeira com que desembarcaram... Não havia ninguém que estivesse melhor que um lenço depois de uma valente gripe!
O dia de seguirem para Malange chegou e foi a vez de tomarem o comboio.
Não se esqueçam de se que estava em 1951. A única coisa boa dessa viagem foi que só durou 1 dia. Não vou entrar em pormenores pois gosto demais de todos vós.
Mais uns dias para se recomporem. A criançada tinha perdido as cores verde e amarela e ganho um belo tom cinza-azulado. Tudo normal...
Mas Cacolo, estava a muitas centenas de kms e não havia nem avião nem comboio para lá e o Papá Lacerda ainda não atingira aquele santo estatuto que lhe daria direito a ter carro próprio... Recorreu-se ao táxi (nessa altura já tinham sido inventados os táxis por ali e pelo resto do mundo, graças a Deus!).
A viagem durou dois dias. A primeira noite passaram-na em casa de um Chefe de Posto cuja esposa fez das tripas coração para os receber nos conformes.
No segundo dia, a uns 20kms do destino e já de noite, o táxi recusou-se a andar depois de meia dúzia de soluços: acabara-se-lhe a gasolina. Estava fora de questão fazer o resto do caminho a pé como a avó Ilda sugeriu, mas a ela tudo se perdoou uma vez que só estava em Angola há meia dúzia de dias e ainda não conhecia as regras do jogo.
E lá estavam todos enfiados num velho Mercedes (ou o que quer que fosse): Os Papás Lacerda, a avó Ilda, os 3 rebentos do casal e o motorista do desgraçado táxi. Ainda havia uns restos de pão que no Posto do Cucumbi lhes tinha sido oferecido pela esposa do Chefe e... tudo bem. O pior veio depois quando um leão começou a rondar o táxi e a Natureza começou a chamar um por um... valeu-lhes um copo de lavar os dentes que a Mamã Raquel tinha à mão! Mais difícil foi com a mais nova da família que tinha 14 meses... Sobre a madrugada o leão desistiu e depois do sol nascer passou uma camioneta que socorreu o grupo novamente amarelo-esverdeado.
Foram recebidos pelo Sr Secretário e família com sinais de grande alívio por terem chegado. Por terem chegado...
Banho, mata-bicho (café da manhã)... Luxúria suprema!
Em casa do Sr Secretário estava o Sr Administrador sessante, a consorte e a cunhada. Esperavam os viajantes para lhes passarem o facho, qual corrida de estafetas.
Durante todo esse dia procedeu-se ao inventário do recheio da casa e da Secretaria e conferiu-se a carga. O Papá Lacerda tomou posse do lugar oficialmente e o resto do dia foi passado em casa do Sr Secretário que fez questão em oferecer as refeições uma vez que ainda não estavam orientados o insigni-viajante (o que seguiria para o próximo Concelho) nem o insigni-ficante, titular daquele.
Durante o jantar de boas-vindas e despedida, o Sr Administrador sessante fez questão de avisar os Papás Lacerda, com muito tacto e oportunidade (?), do facto de, na residência oficial, morar um ex-colega que gostara muito da zona e que, depois de se ter passado para o outro plano, fizera as malas e se mudara para a antiga casa onde fora tão feliz... O Papá Lacerda, católico fervoroso, riu-se às gargalhadas, coisa rara nele pois era de poucos risos. Os pelinhos de todo o corpo da sua primogénita (eu) eriçaram-se. Ela não soube explicar bem se foi por ouvir o Papá Lacerda rir daquela maneira ou por ouvir a conversa dos adultos que, à boa maneira daqueles anos benditos, se tinham esquecido que as crianças não eram surdas... Aliás, todos riram menos os 3 insigni-viajantes.
Findo o jantar e o cerimonial dos agradecimentos, o Sr Secretário e esposa fizeram questão em acompanhar os novos residentes ao casarão.
Não havendo electricidade em Cacolo (ainda não tinha sido inventada por lá embora o tivesse sido no resto do mundo), a Dª Stela empunhou um candeeiro a petróleo para iluminar o caminho.
Ao fundo da alamedazita que separava as duas casas estava a nova residência dos ficantes com as janelas de madeira abertas de par em par e com um candeeiro aceso em cada uma.
-"Que simpática, Stela, ter mandado cá alguém acender os candeeiros!" - disse a Mamã Raquel toda embevecida.
-"Não mandei ninguém... Tenho a chave da casa no bolso desde que de tarde ali estivemos..."
Beijinhos,
Não nasceram de geração espontânea em Cacolo. O Papá Lacerda foi lá colocado depois da sua 1ª Graciosa à Metrópole já com 3 dos seus muitos rebentos.
O regresso de Portugal fez-se de barco desde Lisboa até Luanda como é suposto ter sido. Viagem miserável em que o barco se recusou a estabilizar em qualquer dos sentidos. Se a do ano anterior tinha sido má, essa foi pior pois o factor novidade não estava presente. Sabem como são as viagens de barco, não sabem? O chão, misteriosamente, ganha vida e luta contra tudo e todos que se atrevam a tocar-lhe. E são saltos e solavancos, e... "agora sacudo para a esquerda e agora para a direita e eu, barco, não me divertia a ver-vos ficar verdes e amarelos quais bandeiras brasileiras..."?, mas agora é para cima e cá vamos nóóós para baixo...
A família aumentara em número não porque lhes tivesse nascido outro bebé mas porque a avó Ilda os acompanhou na aventura africana.
Luanda à sua espera, linda como sempre, mas pouco tempo lá estiveram. O suficiente para perderem o ar de bandeira com que desembarcaram... Não havia ninguém que estivesse melhor que um lenço depois de uma valente gripe!
O dia de seguirem para Malange chegou e foi a vez de tomarem o comboio.
Não se esqueçam de se que estava em 1951. A única coisa boa dessa viagem foi que só durou 1 dia. Não vou entrar em pormenores pois gosto demais de todos vós.
Mais uns dias para se recomporem. A criançada tinha perdido as cores verde e amarela e ganho um belo tom cinza-azulado. Tudo normal...
Mas Cacolo, estava a muitas centenas de kms e não havia nem avião nem comboio para lá e o Papá Lacerda ainda não atingira aquele santo estatuto que lhe daria direito a ter carro próprio... Recorreu-se ao táxi (nessa altura já tinham sido inventados os táxis por ali e pelo resto do mundo, graças a Deus!).
A viagem durou dois dias. A primeira noite passaram-na em casa de um Chefe de Posto cuja esposa fez das tripas coração para os receber nos conformes.
No segundo dia, a uns 20kms do destino e já de noite, o táxi recusou-se a andar depois de meia dúzia de soluços: acabara-se-lhe a gasolina. Estava fora de questão fazer o resto do caminho a pé como a avó Ilda sugeriu, mas a ela tudo se perdoou uma vez que só estava em Angola há meia dúzia de dias e ainda não conhecia as regras do jogo.
E lá estavam todos enfiados num velho Mercedes (ou o que quer que fosse): Os Papás Lacerda, a avó Ilda, os 3 rebentos do casal e o motorista do desgraçado táxi. Ainda havia uns restos de pão que no Posto do Cucumbi lhes tinha sido oferecido pela esposa do Chefe e... tudo bem. O pior veio depois quando um leão começou a rondar o táxi e a Natureza começou a chamar um por um... valeu-lhes um copo de lavar os dentes que a Mamã Raquel tinha à mão! Mais difícil foi com a mais nova da família que tinha 14 meses... Sobre a madrugada o leão desistiu e depois do sol nascer passou uma camioneta que socorreu o grupo novamente amarelo-esverdeado.
Foram recebidos pelo Sr Secretário e família com sinais de grande alívio por terem chegado. Por terem chegado...
Banho, mata-bicho (café da manhã)... Luxúria suprema!
Em casa do Sr Secretário estava o Sr Administrador sessante, a consorte e a cunhada. Esperavam os viajantes para lhes passarem o facho, qual corrida de estafetas.
Durante todo esse dia procedeu-se ao inventário do recheio da casa e da Secretaria e conferiu-se a carga. O Papá Lacerda tomou posse do lugar oficialmente e o resto do dia foi passado em casa do Sr Secretário que fez questão em oferecer as refeições uma vez que ainda não estavam orientados o insigni-viajante (o que seguiria para o próximo Concelho) nem o insigni-ficante, titular daquele.
Durante o jantar de boas-vindas e despedida, o Sr Administrador sessante fez questão de avisar os Papás Lacerda, com muito tacto e oportunidade (?), do facto de, na residência oficial, morar um ex-colega que gostara muito da zona e que, depois de se ter passado para o outro plano, fizera as malas e se mudara para a antiga casa onde fora tão feliz... O Papá Lacerda, católico fervoroso, riu-se às gargalhadas, coisa rara nele pois era de poucos risos. Os pelinhos de todo o corpo da sua primogénita (eu) eriçaram-se. Ela não soube explicar bem se foi por ouvir o Papá Lacerda rir daquela maneira ou por ouvir a conversa dos adultos que, à boa maneira daqueles anos benditos, se tinham esquecido que as crianças não eram surdas... Aliás, todos riram menos os 3 insigni-viajantes.
Findo o jantar e o cerimonial dos agradecimentos, o Sr Secretário e esposa fizeram questão em acompanhar os novos residentes ao casarão.
Não havendo electricidade em Cacolo (ainda não tinha sido inventada por lá embora o tivesse sido no resto do mundo), a Dª Stela empunhou um candeeiro a petróleo para iluminar o caminho.
Ao fundo da alamedazita que separava as duas casas estava a nova residência dos ficantes com as janelas de madeira abertas de par em par e com um candeeiro aceso em cada uma.
-"Que simpática, Stela, ter mandado cá alguém acender os candeeiros!" - disse a Mamã Raquel toda embevecida.
-"Não mandei ninguém... Tenho a chave da casa no bolso desde que de tarde ali estivemos..."
Beijinhos,