A dentadura

O nosso pensamento é interessante. Ele nunca pensa aquilo que gostaríamos que pensasse. Independente e livre, pensa o quê bem pretende pensar.

E ri em nossa cara, que está ali, bem pertinho dele! desaforado é o que é!!! Além de veloz! Tão veloz que, nenhuma moderna, ultra-sônica aeronave e nem o mais feroz foguete dos ferozes países ricos e adiantados jamais ganhariam dele, fosse numa apostazinha qualquer. E mais: ele não precisa de aeroportos, de mil botões, nem de NASAS!

Bem, agorinha mesmo, o meu independente pensamento, depois de lançar-me risinhos escarninhos à cara de boba que tenho... foi viajar! Em menos de um centésimo de segundo, lá estava ele, numa praia do litoral paulista... revivendo – de incrível memória – que tem, cenas ocorridas há 55 anos!!! Lá pelos idos de 1948!!!

Acredita?!? Claro que sim, a menos que... o seu pensamento não seja independente e livre!

Estamos numa belíssima praia. É um piquenique entre parentes, amigos e inimigos, de todas as idades.

Como o mar canta gostoso... ora um sussurro apenas, que acalanta... ora um rugir imenso... que espanta!

Como o mar cheira... cheira... cheira a mar!!!

Logo estamos todos dentro dele. É água salgada que entra por todas as bocas (abertas de tanto rir) e sai por todos os narizes; que entra pelos narizes e sai (acho) por todos os ouvidos; que entra, enfim, por todos os lugares em que entrar pode... e que vai, seguramente, sair... por onde houver um encanamento!

O tio Ernest Sprogis, 54, dentista, ensina a todos uma simples canção: “Onda vem, onda vai lá na praia a marulhar; rola aqui, quebra ali, sempre a brincar. Com vigor, sem temor, vamos n’água penetrar... salta aqui, corre ali... sempre a brincar; quando a vaga longe vem, firme o pé, mergulhe bem... onda vem, onda vai... sempre a brincar... ”

Brinca junto um querido adulto, a quem chamaremos de R. E tanto pula e tanto ri o R, que... perde a... perde a ... dentadura!

De baixo.

Todos estamos rindo do R, com o engraçado lábio emurchecido e o R... ri de si mesmo!

A brincadeira fica mais retumbante ainda, eis que todos nós estamos de olhos abertos, embaixo da água... à cata da dita dentadura do R. De baixo.

Nada! Acho que algum previdente peixinho... sabe como é... na velhice até peixe deve perder dentes...!...

43 anos depois. Lá pelos idos 1991. Passeio na areia. A mesma praia... o mesmo banco... as mesmas cores, o mesmo eu dentro de mim! Tudo é igual, mas estou... estou de dedo em riste!!! Há uma dentadura bem limpinha em frente a mim...!

Rápida, pego de uma concha e remexo a dita cuja.

É de baixo! Observo-a pelo norte, pelo sul; analiso-a de leste a oeste... É ELA!!! A do querido R! Conheço-a bem, dentro daquela boca de onde tantas palavras sábias saíram!

Acho que ela não serviu ao previdente peixinho e depois... o tio Ernest Sprogis era um grande dentista! Tudo para agüentar fortes... borrascas

São Carlos, 12 anos depois, outubro de 2003.

Hoje fui ao moderno consultório do meu jovem e competente dentista, Dr. Rodrigo Mazzo Orlandi. Que paciência para comigo!!!... e foi ali, muito bem acomodada eu, ele muito trabalhando... que meu independente e livre pensamento saiu... a viajar!

Acordou– me a gentil assistente Aline: “D. Daidy, vamos marcar hora para a semana que vem?”

– S– s– s– iimm!!! Olhe, menina, vou já para casa, a escrever uma crônica : A Dentadura.

– !!!!?!?!!!...

Naturalmente, você quer saber como é que eu tenho tanta certeza de que a dentadura (de baixo) era mesmo do meu querido R.

Explico. Três razões. Um: o pensamento, independente e livre, é sempre bom! Dois; a peça... de baixo, NÃO era a do dr. Ulisses Guimarães. Três: aquela velha dentadura... ela... sorriu, amorosamente, para mim!!!

Daidy Peterlevitz
Enviado por Daidy Peterlevitz em 23/06/2010
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