Retratos de um Jogo do Brasil
“Bem amigos, voltamos agora em definitivo para mais um jogo dramáááático! Haja coração!”
- Senta logo, menino, já vai começar o hino! – disse uma tia, que sentara num lugar não muito privilegiado da sala.
O menino sentou e fez-se (quase) silêncio. Muita gente estava naquela sala, gente demais, na verdade, todas as cadeiras, poltronas e espaços no chão estavam ocupados por variados tios de pessoas que todas as famílias têm.
Na hora do hino, duas das tias cantavam fervorosamente, algumas pessoas cochichavam e outras talvez nem lembrassem que era jogo do Brasil, mas estavam todas lá, imbuídas do patriotismo que atinge a maioria dos brasileiros de 4 em 4 anos.
O hino nacional terminou, os jogadores começaram a se distribuir pelo campo e a tensão se instaurou na sala. Nos primeiros 3 minutos todos estavam em silêncio. Só mesmo nos primeiros 3 minutos, porque a partir daí uma prima lembrou de uma coisa “importantíssima” que precisava contar a outra e contou, gerando os murmúrios iniciais que, num efeito dominó, gerou outros tantos.
15 minutos de jogo, zero a zero, o dono da casa já derretia de calor e nervosismo com o jogo monótono da seleção, mas os jogadores iam se aproximando do campo, os atacantes chegando a pequena área e... Perderam a bola! Uhhhhhh! O dono da casa jogou os braços para cima reclamando e derramou cerveja na irmã.
- Olha o que cê tá fazendo, Alberto! – gritou ela, limpando o braço melecado na camisa canarinha do irmão.
- Para com isso, Ciça! Deixa eu ver o jogo em paz! – disse Alberto aumentando o volume da TV para o máximo.
- Vocês são surdos?! Eu tô ouvindo até a respiração do Robinho! – reclamou um primo, porém ninguém deu ouvidos.
Duas crianças correram passando pela frente da TV, uma delas pisou num pote cheio de pipoca recém preparada e derrubou grande parte do conteúdo.
- Olha isso, moleque! – gritou a mãe dele levantando do sofá.
- Psiu! – fez Alberto, a cara fechada.
- Vem cá! Vem cá! – a mãe saiu atrás do filho passando pela frente da Tv na hora de um quase gol.
Todos gritaram para ela sair, menos as primas que tinham assuntos bem mais importantes para tratar.
- Essa seleção assim não dá! – Alberto reclamava. – Tem que mudar o esquema, colocar esses volantes mais pra frente! – Mais algumas cervejas – Vai, Brasil!
A mãe, que havia levantado para dar bronca no filho, voltou vindo da cozinha com uma bandeja de carne fumegante, o cheiro era muito atraente, ela pôs a bandeja sobre a mesinha de centro e em exatos 47 segundos todos já havia pego seus pedaços e guardanapos vazios descansavam cobertos por molho na bandeja. Todos menos Henrique, que nem piscava, estava quase petrificado de olhos vidrados na TV.
32 minutos de jogo e lá vem o time da Holanda e... Ufa! O goleiro pegou.
Ouve-se choro vindo de algum dos quartos, ninguém se mexe, mas quando o choro aumenta e vem acompanhado de um grito, a mãe – a mesma de antes – levanta novamente para acudir seu primogênito.
O narrador e os comentaristas fazem comentários óbvios e redundantes a toda oportunidade que têm. Um sobrinho adolescente Alberto começa a se irritar com eles, “pelo amor de Deus, calem a boca”.
Faltam 5 minutos para o fim do 1º tempo e nada de gols ainda. A avó – matriarca da família – anuncia sua chegada à sala com os já característicos chiados de suas velhas sandálias no piso de madeira.
- Como está o jogo? – perguntou ela com a voz impávida e colossal, vestindo a camiseta da copa de 1994, que, segundo ela, dava sorte.
Por sua voz baixa e suave ninguém notou sua presença de início mas bastou uma olhadela pela sala e Alberto disse, mesmo sem ter ouvido a pergunta:
- Nada, mãe. Zero a zero, o Brasil não tá bem.
As sandálias voltaram a chiar e lá se foi a senhora.
Um irmão de Alberto – que estava ficando bêbado – começou a fazer ferozes comentários sobre o jogo e o técnico num momento de silêncio das outras pessoas. Ele falou, falou irritando a todos até que surgiram as cornetas invocadoras de demônios (também conhecidas por: vuvuzelas), as crianças voltaram do quarto com exemplares do torturante instrumento.
- Deixa isso pra hora do gol, menino!
- Mas desse jeito nem gol vai ter.
- Ai, para de barulho Gabriel – reclamou a irmã mais velha dele.
Ele não teve nem tempo de parar porque aos 45 do 1º tempo o atacante brasileiro driblou um, dois, o goleiro e GOOOOOL!
As vuvuzelas soaram e pareciam se multiplicar. As pessoas comemoravam, gritavam, se abraçavam, fogos de artifícios eram explodidos nas ruas, buzinas... É o êxtase.
Acaba o 1º tempo, as pessoas se dispersam pela casa para se reabastecer, menos Henrique que com a sala esvaziada arruma um lugar melhor para sentar e agora acompanha os replays.
Marchinhas de carnaval e outras canções sobre o país tocam nos carros na rua, muitas das pessoas bem mais “alegres” com o álcool ingerido. Pouco a pouco as pessoas comem, conversam, dançam, cantam e depois vão voltando para a sala tentando readquirir o território já conquistado na frente da TV.
O árbitro apita e o jogo recomeça, as pessoas estão mais relaxadas, muitas batem papo, as crianças correm, há comentários desnecessários em horas desnecessárias, pleonasmo por parte do narrador, cervejas, vuvuzelas e urros de “quase gols”.
15 minutos do 2º tempo, a Holanda ameaça mas numa jogada triunfal de contra-ataque o Brasil faz outro gol! Com a tensão passada as pessoas gritam felizes, se abraçam, é um clima maravilhoso, menos para Henrique, ainda nervoso.
A matriarca volta para repetir a pergunta, mas antes que o fizesse Alberto corre a abraça.
- Dois a zero, mãe! Dois a zero! Brasil!
Ela se assusta mas sorri, todos felizes agora, se brincar até Henrique é levado pela zorra e recebe uma “vuvuzelada” bem perto do ouvido e nem reclama.
Um jogador brasileiro é derrubado na pequena área e automaticamente várias pessoas gritam indignadas: “Pênalti!”, “É gol, já!”, “Ele tem é que ser expulso”, “Vai lutar boxe, animal!”.
A bola é colocada na marca do pênalti, o jogador se distancia, o árbitro apita, o artilheiro corre, chuta... É gooooool!
- É disso que o brasileiro gosta! – Alberto se exaspera de empolgação.
Comemoração, euforia! Alberto quase cai empurrado.
O jogo continua, os jogadores já bastante cansados e alguns minutos depois... termina. “AÊÊÊÊÊ”, aplausos, agora é festa e como no Brasil qualquer coisa é motivo para um feriado nada mais importa, trabalho? Responsabilidades? Vamos beber! É festa no Brasil inteiro. Alberto, já no alto de muitas cervejas diz:
- É assim que a gente gosta da seleção!
E o sobrinho impaciente o encara por alguns segundos vendo a contradição.
Vevuzelas. Fogos. Cervejas.
E quando começavam a passar as entrevistas ofegantes, entre puxadas de ar dos jogadores, Henrique anuncia:
- Ganhei o bolão!