Inveja

Numa manhã normal, acordei normalmente atrasado, tomei leite com chocolate e pressa, escovei o dente ainda com sono e não lavei o rosto para não acordar. A vontade é de estar sempre dormindo, porque é assim que minha vida vai, dormindo, como se estivesse morta, como bilhões de vidas que apenas sobrevivem e não vivem, como eu nunca quis.

Saí de casa com a cara sonolenta, coloco a mascara e sorrio para cumprimentar alguns conhecidos que talvez estejam de máscara também. Choro por dentro, rio por fora, na ponte por onde sempre passo, encontro um rotulado mendigo, lindo sorriso, até contagiante, mas tenho no momento anticorpos, que se defendem da alegria como um exército defende sua vila, só deixam que eu esboce um rascunho de sorriso, ele percebe e ri de novo, ao invés eu invejo esforço para rir e agradá-lo. O mendigo chama-se Luis Barbosa dos Santos, sempre que posso, converso com ele, me conta suas estórias, suas fantasias, seu mundo diferente, parte da cabeça já está tomada pela loucura, mas seu crânio tem como recheio a insanidade e a lucidez, causando um tempero ótimo para colocar no bolo da vida.

Continuo meus passos por não ter tempo de dar atenção a quem me agrada, saio da ponte e dou de cara com uma figura ilustríssima na cidade, seu nome é Ganso, na verdade é apelido, mas não sei seu nome. Como sempre estava ele e seu companheiro, sempre ali do seu lado, vejo que Ganso o beija com vontade, o olha com amor, sempre endeusando seu copo de cerveja, um companheiro de anos, meses e minutos do bêbum feliz. Eu num ato invejoso e infeliz de minha parte brinco com ele:

_ Começou cedo hoje né, Ganso!

Ele me olha, reconhece e brinca:

_ “Colé” cara, VAI TRABALAR, RRRARAAARRAARAR?

Eu solto um sorriso demonstrando que ainda estava brincando e sigo meu caminho. Penso como este Ganso deve ser feliz, a sociedade não o atinge, seu lema é curtir, seu passado passou e seu futuro deixa pra depois. Como ele mesmo diz: _ “To curtindo, to curtindo!”

Continuo o caminho do serviço proletário, com meus passos, meus pensamentos, minha dor, minha inveja, minha máscara. Continuo seguindo, sentido-me humilhado pelo pelos dizeres e gargalhadas do Ganso, eu jovem de 20 anos quase 21, oito horas de sono por dia, regrado, bom garoto, trabalhador, mais um sobrevivente invejando um vivente. Ele, por vota de 45 anos, bêbado, risonho, sem sonhos ou desejos inalcançáveis e difíceis, esquecendo de sobreviver, vivendo por e para viver, zombando de mim.

Enzo Pinho
Enviado por Enzo Pinho em 05/09/2006
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