A obra fica na esquina. Dá para observar os dois lados da rua principal e ainda a outra rua que vai de encontro a ela. A formação em tê permite uma paisagem sem par e, claro, a vigilância total e ilimitada da área. Ninguém, passa pela esquina sem ser analisado pelos cinco pedreiros que riem de não sei o quê, assoviam, cantam refrões sertanejos e combinam saídas para a noite. “Ei, cara, vamo lá na sexta!”. O outro, lá do outro lado: “ Sexta dá não, bicho, tenho que levar um dinheirinho pra dona encrenca senão comprica!”

Enquanto eles constroem lá, eu me desconstruo aqui. Meu sol desabou, quando minhas janelas se grudaram lá nas pupilas bisbilhoteiras dos vizinhos de enxada e pá. Meu silêncio despencou. Televisão ou música? Poderia devolver todos os aparelhos que tenho em casa. Só o canal da marreta e da ponteira funciona em conjunto com o canto desesperado, nada lírico, da maquita cortando a cerâmica gelada. Tenho a sensação de que estou morando no deserto e enfrentando verdadeiras tempestades de areia. A única diferença é a cor dessa que se move lá de cima em ondas avermelhadas. Nem quando chove a coisa melhora. Tenho a sensação de estar rodeada de morcegos gigantes, quando os vejo cobertos daquele jeito, com sacos pretos da cabeça aos pés, zanzando pela construção inacabada.

A vizinha de trás teve um gasto tremendo. Por causa da obra, teve que entrar em obras. Agora, a varanda ficou parecendo um aquário. As samambaias que respiravam a fresca da tarde agora reluzem ao sol das manhãs acalentadas pelo frescor do ar refrigerado. Parecem polvos verdes a guardar caretas da empregada que nada ouve quando alguém chama: “É o quê? Quem?”

Eu fiquei no meio. Por quanto tempo, eu ainda não sei. Se tiver sorte e o dono da obra, dinheiro... Pode ser que o tempo ande rápido. Quer dizer, talvez ele tenha que trocar alguns homens por outros menos mulherengos, ou mandar fechar o beco da outra rua onde mora uma família inteira. Mulher deve ter uma dúzia, que vai à padaria, ao mercado, ao hortifruti. Vai é volta. Também vão e vem ao colégio, ao centro da cidade, ao posto de saúde...
 
O trânsito por ali aumentou consideravelmente, desde que a obra começou. Trabalho duro! Eles enfrentam os sucessivos passeios com a cara e a coragem e elas... Bem, elas com caras e bocas. Eu? Sei lá, por enquanto.

 

 

Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 21/06/2010
Código do texto: T2333704
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