Hospital Matarazzo
A pediatria já era bastante movimentada com as mães e seus filhos - alguns bebês e outros já crescidinhos como eu - que, buscavam alí a atenção médicas às diversas enfermidades infantís. Eram os idos da década de 1950.
Sarampos, catapóras, algumas verminoses, anemias, febres súbitas, fraquezas, o que se apresentasse de mal estar, lá iam todos em busca do tratamento adequado.
Por vezes, eu e minha mãe, subíamos a rua Itapeva, que é uma ladeira bastante íngrime em seu início na rua Rocha, até atingirmos a alameda Rio Claro e adentrarmos no grande terreno onde estava edificado o Hospital Matarazzo. As manhãs eram quase sempre frias e uma leve serração ainda resistia antes do tênue aquecimento.
Percorríamos a alameda interna até alcançarmos a ala da pediatria, que ficava nos fundos do enorme terreno e bem próximo da capela para, depois de adquirir a senha numérica, escrita em um pequeno pedaço de cartolina, aguardarmos a nossa vez para a consulta e, instantes depois, éramos atendidos pelo médico pediatra.
Era um sujeito de feições austeras mas, muito sutil e delicado para com os pequeninos. Tinha traços escandinavos e se parecia muito com as figuras dos 'vickings'. Só lhe faltava o característico capacete e o tradicional barco. Sua barba ruiva e meio avolumada completava o seu perfil nórdico.
O jaleco branco dissipava qualquer impressão em contrário daquele médico de compleição avantajada e a sua atenção na triagem inicial da consulta deixava-nos calmos mas, um pouco curiosos.
Apelidei-o de 'Doutor Cara de Leão' e o fiz na minha inocente sinceridade de criança e somente à minha mãe revelei tal apelido que, encantada com a indevida alcunha, repreendeu-me gentilmente seguida de uma discreta risada.
Não me recordo qual era o seu nome. Apenas ficou a sua lembrança física, estereotipada em minhas reminiscências.
A consulta seguiu seu ritmo normal com o 'Doutor Cara de Leão' me ascultando meu peito e costas, examinando meus ouvidos, examinando abdomen, olhos e garganta, com o abaixador de língua para observar possíveis inflamações das amigdalas e tomando a minha temperatura com termômetro intra-axila.
Ato contínuo, perguntava à minha mãe sobre possíveis queixas ou dores minhas, ao que ela respondia e de acordo com os sintomas que eu apresentasse.
Suas mãos eram suaves e gentís mas, firmes e decididas e a cada movimento seu com um utensílio de exames, eu percorria com os meus olhos e já achava que era momento para decidir o meu futuro. 'Vou ser médico também' - pensava em silêncio. 'Bombeiro é muito arriscado'.
Eu ainda não tinha plena consciência das responsabilidade que estas e outras profissões exigiam e ficava à mercê dos devaneios.
Terminada a consulta e enquanto minha mãe ultimava as finalizações do atendimento, eu sempre seguia para os fundos da ala pediátrica e lá contemplava um belo jardim com alguns carneirinhos que por alí pastavam. Deveriam ser do jardineiro ou do próprio hospital.
Denominado inicialmente como 'Umberto Primo' ou 'Umberto Primeiro', foi construído no início do século vinte. A casa de saúde 'Francisco Matarazzo' foi inaugurada em meados de 1915 e com ela veio a maternidade 'Condessa Philomena Matarazzo'.
Sua construção partiu de um consórcio de vários ricos empresários da época, sendo que o Conde Francisco Matarazzo foi quem mais investiu no patrimônio e tinha um slogan todo seu: 'que o dinheiro do rico seja revertido para a saúde dos pobres...'.
Durante muitas décadas, o 'Hospital Matarazzo' mostrou a sua pujança com o primor no atendimento médico aos mais necessitados, sem que para isso tivessem de gastar um tostão sequer pois, lá, tudo era gratuito.
Muitos profissionais de saúde fizeram do 'Hospital Matarazzo', o seu 'navio-escola', formando-se ou especializando-se nas mais diversas áreas da medicina. Foi também, o primeiro banco de sangue do estado de São Paulo e ofereceu seus bons serviços até 1993, quando foi fechado e suas atividades encerradas.
Quase oitenta anos de bons serviços de saúde para o povo humilde da capital de São Paulo e dos interiores do estado e até dos estados vizinhos. Com ele, ficou a marca de um compromisso e o desprendimento de um empresário que, ao chegar em terras estranhas, encontrou as oportunidades para, com coragem e obstinação, fazer valer o seu ideal, acreditando no futuro da nação e sem desmerecer aos mais necessitados.
É uma pena que hoje, o Hospital Matarazzo seja tão somente um vulto de um passado não tão distante e, que suas paredes, que antes sufocaram as agonias dos enfermos, hoje agonizam num silêncio sepulcral, em detrimento daqueles que podem e deveriam abraçar a causa humana da saúde pública e oferecer, ao menos como lenitivo, as atenções básicas de saúde que o povo tanto precisa.
Sucumbe, como uma letargia, num profundo e involuntário coma, aquele que, com certeza, já foi referência de saúde pública gratuita de muitos paulistanos, quer fossem nas pediatrias ou nas clínicas mais excêntricas que um dia ofereceu o saudoso 'Hospital Matarazzo'.
Em minhas lembranças, vejo-me agora ao lado de minha mãe e, de volta para casa, descendo a rua Itapeva, com um sol ainda acanhado das frias manhãs paulistanas.