LEI FICHA LIMPA

LEI DA FICHA LIMPA:

A ESQUZOFRENIA DE UM SISTEMA QUE PROFESSA A DEMOCRACIA, COMPORTA-SE COMO OLIGARQUIA E PENSA SER ARISTOCRACIA

“Em que se fundamenta a tese de que os brasileiros desonestos são minoria se quem elege os corruptos é a maioria?”

Claudio Chaves*

Diz o dicionário que as principais características da esquizofrenia clínica são: “a dissociação e a assintonia das funções psíquicas, disto decorrendo fragmentação da personalidade e perda de contato com a realidade1”.

De fato, há algumas semelhanças entre as versões clínica e política dessa patologia. O mais recente sintoma da esquizofrenia política brasileira é a Lei Complementar 135/2010, batizada como Lei da Ficha Limpa, a qual, segundo querem fazer crer seus autores, separará o joio do trigo, permitindo concorrer a cargos eletivos somente os legítimos cidadãos de bem.

Como no caso clínico, na manifestação política, esse novo surto mostra exatamente assintonia com as funções políticas, tendo como decorrência a fragmentação da personalidade política – tanto do candidato quanto do eleitor – e mostra o descompasso entre a visão (ou a intenção) dos governantes e a realidade (ou necessidade) dos governados.

No Brasil, é assim: constata-se um problema e, não importando sua natureza – se moral, política, civil, militar, social, econômica, cultural, religiosa... –, logo se apresenta a solução: a lei – a panacéia que resolve tudo: da desigualdade racial à violência familiar, da exclusão social à violência urbana, do nepotismo à ascensão do governante incauto, do larápio e do imoral. “Tudo se resolve com a lei”. Essa é a promessa dos governantes demagogos para uma nação de governados hipócritas2. Ora, se a lei, por si, impedisse a ação de criminosos qual a necessidade dos agentes públicos, como promotores, delegados, policiais e, principalmente, os juízes? Por que tanto tempo, energia e dinheiro empregados para supostamente se impedir algo (a eleição de candidatos corruptos) que, dependendo do nível de formação moral e política do povo, jamais passará de simples possibilidade? Por que os candidatos – e somente eles – têm que ter a ficha limpa, enquanto o eleitor pode continuar com a ficha suja? O que é mais grave: algumas centenas de fichas-sujas candidatos ou milhares ocupando cargos por indicação e milhões votando? Quem tem maior responsabilidade pela presença dos fichas-sujas no poder: o candidato, que se apresenta como apenas uma dentre várias propostas, ou o eleitor que, espontaneamente, o escolhe como melhor solução? Ou será que a lei impedirá, também, que os fichas-sujas ocupem cargos por indicação ou exerçam o direito de votar?

E mais: se a democracia se fundamenta no poder de liberdade dos governados par escolher seus governantes, por que a lei tem que se antecipar ao povo, fazendo uma seleção prévia, dizendo a este quem serve e quem não serve para lhe governar? Onde está a coerência nisso? Será que o povo é tão ingênuo e tão ignorante que se torna incapaz de separar o joio do trigo? Ou será que, com a sanção de tal lei, os governantes estão assumindo que o fascínio do povo por candidatos moralmente reprováveis é tão grande que somente por força de lei é possível impedir a escolha destes como legítimos representantes daquele? Ou será ainda que os juristas empenhados na questão preferem impedir que os fichas-sujas sejam ao menos uma possibilidade de se tornarem governantes por admitirem que, uma vez no poder, seus encantos são capazes de neutralizar até mesmo a eficácia das ações da própria Justiça? É engodo, senão demagogia e hipocrisia, exigir que os governantes sejam moralmente melhores que seus governados.

A Lei da Ficha Limpa representa um retrocesso à consolidação e à ampliação da democracia. O principal mecanismo de combate à corrupção e a qualquer outro desvio moral de uma sociedade não são as leis nem os tribunais ou as penitenciárias, mas a formação política consciente, sensível e eficaz de seus membros.

Todas as vezes que o poder público se intervém e antecipa ações de competência do cidadão comum – principalmente quando procura direcionar escolhas que constitucionalmente lhe são pessoais e intransferíveis – inicia-se um processo de infantilização da sociedade e expõe a própria incompetência do sistema em formar cidadãos ou invés de instruir elementos. Ademais, é completamente inadequado e perigoso para uma democracia frágil e em processo de consolidação, como a brasileira, confundir-se direito político com direito civil.

Isso é mais um indício de fortalecimento de um processo, cada vez mais crescente, de bestialização da nação.

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*Membro da Academia Laranjalense de Letras

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1 Novo Dicionário Aurélio.

2 Apesar da aparente generalização, reconheço que seria leviandade aplicar esses adjetivos a todos os governantes e a todos os eleitores brasileiros.