Alice e Nicolai nos campos do esquecimento*

Acordar no outro dia pode ser uma aventura estravagante e dispensável, dada a falta de surpresas que o dia guarda.

Alice arregala seus olhos inexpressives quando o sol queima sua pele manchada de sangue. A fome, a dor, a insuportável solidão pelos campos, tudo é tolerável, desde que não seja necessário tomar partido novamente.

Ao longe, um ajuntamento de pessoas sai de suas trincheira. Cada um retoma seu instrumento. São tubas, trumpetes, clarinetes...uma banda do interior.

Alice se junta aos humanos.

Caminhos são sempre uma pergunta e uma resposta. E no fim não levam, de fato, a lugar nenhum. Só servem para fugir para sempre.

Mesmo assim, a turba que arrasta Alice persegue o horizonte queimado pelas bombas.

Devido à enorme e flagrante falta de criatividade, a única coisa que é possível para amenizar a angústia de se estar vivo, quando todos foram estraçalhados, é a música.

Aos poucos as notas preenchem os cantos vazios das casas derrubadas e se avolumam até o limite da insanidade, com frangalhos humanos que dançam desordenadamente ignorando deliberadamente as feridas infeccionadas.

Alice acha que deve cantar. Mas se seu grito fosse tão forte quanto sua escuridão, provavelmente o mundo acabaria aterrorizado por fantasmas e espectros do que já foi.

A banda se arrasta mais e mais, com sua música canhestra, tão complexa e tão crua que de onde observo, daqui do alto, tenho medo de parar e perguntar: "por que Deus faria isto?" Mas não sou bom em perguntas, nem tão inteligente quanto pensava. Então prefiro apenas pensar, para meu desespero, que se eles não têm asas, então talvez sejam melhores que eu.

Ao longe, lá, onde o horizonte indefectivelmente desaba, outro som se insinua como um réptil corrupto pelos galhos secos, onde os urubus aguardam o ultimo quase defunto ir para o inferno.

É Nicolai, o Grande. Nicolai, o Ferido. Suas mão estão tão calejadas, que nem parecem fazer parte de seu corpo. Seus olhos permanecem lindos, e sua barba rala também, apesar das pequenas queimaduras, das manchas e da dor. E assim que seu olhar percebe a banda que se aproxima, ele cala o que diz a madeira.

Eis o Martelo de Deus...

Alice é tão fugidia quanto um suspiro apaixonado e Nicolai tão grave quanto um livro com capa de couro. E por isso, essa coisa que desabrocha no coração como um câncer em metástase. E o coração sempre trai.

Quando a guerra termina, quando se pensa que nada mais pode ser tão mortal, então, as almas se encontram. E o que nasce no coração do homem é tão avassalador, tão insuportavelmente venenoso, qua só há um aforma de viver: ser escravo voluntário para sempre.

Alice é pura estranheza. Nicolai é puro pavor. E enquanto a banda vai aos poucos se calando e procurando abrigo por causa da chuva, os dois se observam. Constrangidos pela fome e excitados pelo abismo que se aproxima. Nada melhor para morrer do que confir seu coração ao outro.

E a chuva desaba. Esse fenômeno meteorológico não tem nada de romântico. Não são os anjos chorando. Não sou eu chorando. Na verdade, eu nem choro. Não tenho pena de ninguém.

Eu sempre viverei perdido. Viajando com meu circo com lona de chumbo, com feras de plumagem excêntrica, mulheres que se dobram como origamis e homens tão fortes, que seriam capazes de remover meu ego do mapa. Mas sou um anjo. Isso é status. Que se dane quam não é....

A chuva lava os desenhos que a guerra fez na terra, lava o vômito de Nicolai, e o sangue nas pernas de Alice.

A paixão é assim. E faz com que se digam coisas sombrias.

-É você mesmo?

-Sim, Nicolai.

-Trouxe a chave?

E elas, as chaves, podem mudar o mundo. Ou trucidá-lo de vez.

Segue meu coração mutilado.

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*Ao meu grande amigo e escritor Otávio Marin, cujos escritos muito me inspiraram para criar esta obra.