Carta

Datada com o ano de 1935. Paris, outubro de 1935. De quem poderia ser a caligrafia exímia? Exótico outubro na vida desses estranhos correspondentes, cujo legado estava sobre a mesinha entre cartas de tarô, além de objetos para fumantes, entregues preferencialmente aos cuidados do livreiro. Havia adquirido a carta das mãos de um colecionador de quinquilharias situado na quadra, 35. (Novamente o número).

Evitou resistir ao mistério de um envelope fechado quando, absolutamente só, rompeu o lacre fino de goma arábica com vapor de água. Não sem antes depor meticulosamente um disco de Gershwin. “Porgy and Bess”.

Sofreu um desapontamento. Além do cartão havia aquela folha que trazia apenas a seguinte nota: Paris, 1935. Lembramos de você após o Quinto Quarteto para corda de B. Bartok. Havia violado uma correspondência que sequer havia sido enviada, perdurando no sono eclético do livro engordurado de Bilac. Tinha suas razões para compreender o contrário excitado pelo benefício da dúvida.

Compreendeu que havia possuído um objeto sem fim e sem fundo. Apenas animado pela estranha privacidade do envelope.

Compreendeu que o protagonista da carta devia ser um homem alegre e cheio de vitalidade. Decerto havia retornado eufórico da Europa para o seu mundo de origem. Lá estava de regresso comentando Stanley ao amigo do campo como se fosse um parente próximo. Erguendo a taça brilhante e declarando: Stanley isolou pela primeira vez um vírus. Esposou ainda mais a imaginação graças a vontade de explorar algo palpável sobre o destinatário. Estava agora unido ao destino desconhecido comum ainda mais fantástico quando violado. Buscou vestígios no ano 1935. Passou por Alberto Moravia quando escreveu “As Ambições Defraudadas”, mas lembrou ter sido em 37 e não 35. Cheirou a carta deixando-se levar pelo aroma de guardado do objeto no tempo, prestando atenção ao borrão que parecia ter sido de batom.

No mesmo ano em que Gershwin apresentou Porgy, Borges contou ao mundo a “História Universal da Infâmia”. Para eles devia ser uma obra pesada. Ficava antes com Stanley e o seu estranho olhar para o mínimo infinito com seus pequenos animaizinhos. Considerou o ano impressionante. Queria ter vivido em Paris nessa época, porém sem o fantasma da guerra. Começou a se sentir forçado ao passado da carta. Havia afundado nesse desenho humano de imersão, ponto alto da capacidade inventiva, até a curva na linha do retorno em que todas as coisas se enfeitam de eternidade. Pois até a reforma agrária de Cárdenas no México, havia sido em 1935. Sua memória deslizava como um filme entre Vargas e Roosevelt além do copo de uísque. Roosevelt andava as voltas com o New Deal e Vargas...

O sono começava a lhe pesar revelando outras fontes de imaginação em seu processo de transitoriedade. Retornou ao ano 37 quando o homem de Java mostrou sua cara através dos vestígios. Era o resumo para que lamentasse a história por deixar de ser uma colagem onde pudéssemos besuntar cada pedaço evolutivo numa linha ascendente de acordo com as necessidades. Compreendeu que tal fenômeno só pode ser uma escolha preferencial de cada homem nunca um processo universal coletivo.

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Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 21/06/2010
Reeditado em 22/05/2020
Código do texto: T2332388
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