Como um anjo caído
Em Platão, reza o Mito de Er que nós optamos ser o que somos antes mesmo de nós nascermos, de forma que a nossa “descida” para este mundo tem algum propósito específico. Passando pela Planície de Letes (esquecimento) e travessando a Necessidade, tais lembranças são apagadas de nossa alma restando apenas o nosso daimon (gênio, coração) para nos guiar.
De fato, por mais que me esforce não me lembro absolutamente nada sobre as circunstâncias que me fizeram passar de outro mundo para este, mas em compensação, ainda me são mui frescas na memória as recordações sobre outra passagem não menos importante: a de minha adolescência para o mundo adulto. Dezoito anos é uma idade marcante. Fui coroado com a celebração de três rituais inesquecíveis – exame de habilitação, alistamento militar e vestibular. Nas entrelinhas, pistas me foram dadas sobre quem eu sou, de onde vim, para onde vou...
Todo garoto espera completar dezoitos anos para poder dirigir, e eu não fugi a regra. Atingida a maioridade, procurei uma auto-escola e me inscrevi para os exames – estava a um passo da tão esperada liberdade-quatro-rodas. O exame prático eu tirei de letra, já no exame teórico fui reprovado por um critério absurdamente inimaginável. Ao invés de assinalar com “x” as respostas no gabarito conforme constava nas instruções, pintei os quadradinhos imaginando que a correção seria por leitura óptica. Triste engano. Eles interpretaram isso como inabilidade para seguir regras, falta grave, e anularam a minha prova. Revolta! Tive que esperar mais um mês e pagar nova taxa. Fiz então outro exame e desta vez fui aprovado e, desde então, condutor exímio, recebi nove multas por infrações de trânsito. Óbvio que nenhuma delas foi proposital... apenas pequenas distrações como violar quadradinhos quando a sinalização diz “x”.
Dezoito anos é também a idade do alistamento militar, privilégio de nosso país restrito apenas à classe masculina. Não me agradava nada a idéia de ficar pelado em fila com outros machos, como se o exame médico fosse para gado, em rebanhos, a fim de constatar pereba ou piolho. Por sorte, fui dispensado já na primeira apresentação e não precisei passar por isso. Mas a obrigatoriedade da apresentação não bastou, houve ainda o juramento à bandeira, uma encenação de volveres à esquerda e volveres à direita de quase cinco horas e sem coffee break (jurei defender o país e escarnecer todo tipo de despotismo).
O alistamento e habilitação foram muito instrutivos, mas sem dúvida, o maior de todos os ritos de passagem foi o vestibular, processo este demasiado confuso para um adolescente que não sabia o que queria (ou queria demais). Pensei em Arquitetura, Desenho Industrial, Matemática, Administração, Economia, e até Psicologia. Fui aprovado em Economia na PUC, cheguei a fazer um ano de Administração no Mackenzie e hoje estou na Matemática da USP. A Matemática tem a grande vantagem de ser nada, e por isso, estar presente em tudo. Pitágoras dizia que tudo é número, e Platão, em sua Academia, advertia: “que não entre aqui quem não souber Geometria”. Quis entrar como quem quer sair de uma caverna em chamas! Mas isso não vem ao caso agora. O caso é o que se passou em uma destas provas de vestibular, acho que para Economia na PUC. Na data marcada, cheguei antecipadamente no local da prova e fui procurar minha sala. Do lado de fora, ao lado da porta, uma lista afixada confirmava meu nome: Francis Toyama. Era ali. O interessante era que como a lista e a disposição dos lugares na sala estavam em ordem alfabética, me dei conta de que eu sentaria ao lado de outro Francis. Emoção! Fato incomum para quem tem um nome incomum. Por incrível que pareça aquele seria o primeiro contato direto com uma pessoa homônima. Sentei-me no meu lugar e aguardei. Como ele seria? Japonês, alto, loiro, baixo, cabeludo, gordo, moreno, branquelo, cheio de piercings? Para satisfação da minha curiosidade, enfim, ela chegou... Francis era uma garota! Cruzamos os nossos olhares e pairou um certo ar de embaraço, ela parecia constrangida. A prova começou, não chegamos a conversar.
Esse tipo de experiência não foi a primeira e nem a última que a ambivalência de gênero do meu nome concedeu-me: “Sra. Francis, o médico a espera”; “Sra. Francis, seja bem vinda ao curso ‘Oficina de Texto’”; “alô, gostaria de falar com a Francis por favor?”. Não ligo mais, já me acostumei. Adoro meu nome e gosto de pensar na idéia de anjo, que não tem sexo. Francis, o anjo assexuado – missionário enviado de Deus. Notem, não falo de preferências ou inclinações sexuais, tampouco de religião. Falo do espírito, esse sopro divino que nos anima e não tem cor, raça ou sexo. O Amor é universal. Sou cidadão do mundo com nome universal: Francis vem do inglês, uma forma reduzida do nome Francisco; este, por sua vez, vem do latim Franciscus que significa francês. Mas sou brasileiro, sansei, japonês por descendência. Francis Toyama, anjo latino-euro-oriental, que conheceu o Paraguai de ônibus e nunca viajou de avião. Anjo caído, asas quebradas, aspirando voar...
Outubro de 2003