Paraty

Nas férias de julho de 1982, Tio Orico organizou um passeio para última cidade ao sul do Estado do Rio de Janeiro. Saí de casa com meu pai, que me levou até a Praça Zé Garoto no centro de São Gonçalo. Lá eu embarquei num ônibus fretado com boa parte da família. Meus pais e irmãos ficaram em casa. Foi a primeira vez que viajei sem um deles. O ônibus era grande e confortável, de uma empresa chamada Santa Bárbara. Hoje não sei se ainda existe tal empresa. E os ônibus estão cada vez melhores e mais confortáveis. Embora prefira viajar de avião, confesso que muitas vezes a única opção é realmente o transporte rodoviário num país cortado por estradas e com pouquíssimas ferrovias apesar das dimensões continentais. Quando entramos num desses transportes, aproveitamos para aprender um pouco da paisagem e dos lugares onde paramos para lanchar ou para o abastecimento do veículo. Ver a paisagem lado a lado tem suas vantagens em relação a ver o cenário de cima. É mais íntimo. Mais a demora... Deus meu!!!

Ficava imaginando do horizonte próximo quando baixo eu e o ônibus no mesmo plano. Depois passei imaginando mais alto soberano num aéreo plano. Navegando sem boiar já toquei a borda da Terra sem cair no precipício. Já andei sem sair dos trilhos. E nesse exato momento estou viajando na memória a fim de abastecer minha escrita. Agora a nave pode correr. O tanque está cheio.

Atravessamos a ponte Rio-Niterói, seguimos pela Av. Brasil, por outras pontes e viadutos. Chegamos a Itaguaí. E eu só lendo as placas (e comendo pastéis). Entramos em Mangaratiba, uma cidade muito verde de Mata Atlântica. Mais um pouco e um susto. A Usina Nuclear de Angra dos Reis! Nunca tinha visto uma antes (até hoje não vi outra). Seguimos com as esmeraldas do mar a minha esquerda e da vegetação a minha direita. Era um deslumbre mesmo a noite. Alguns bichos cruzavam a estrada e o motorista tinha de frear repentinamente. Era um susto divertido (pelo menos para o garoto de quase doze anos que eu era). De manhã chegamos a uma espécie de galpão com varanda que chamavam de rodoviária. Na rodoviária Novo Rio havia guichês de empresas maiores do que toda a Rodoviária de Paraty. E como era poeirenta e feia. Pensei comigo. É pra cá que tio Orico nos trouxe. Eram cinco horas da manhã. Não havia quase ninguém na rua. Somente a padaria e um botequim estavam abertos ali por perto. Consegui ludibriar a minha vó e sai pela esquerda. O quadro mudou drasticamente. Foi uma das melhores surpresas que já tive. As ruas de pedras pé-de-moleque e o casario do século XVIII foram algo indescritível para mim. Alcançaram-me felizmente e eu como um rei com séquito atrás de mim. Não tenho e nunca tive o costume de andar descalço, mas em Paraty a vontade de tirar o tênis e sentir aquelas pedras era imperioso (e muito mais confortável). Atualmente vou para lá sempre com sandálias. Levo um tênis somente para a viagem por causa do ar condicionado polar da empresa de ônibus (já disse que não dá para ir à Paraty de avião porque os vôos para lá só fretados). Diante daquelas pedras são só sandálias penduradas, pés no chão e cabeça nas nuvens.

Cheguei até a ponte sobre o canal ou Rio Patitiba. Que coisa linda! Passam barcos aqui embaixo. Então estou em Veneza! Onde estão as gôndolas? Uma canoa imediatamente passou com caiçara em pé dentro dela. Não sei se ele cantava porque o vento não me deixaria escutar mesmo com meu ouvido apuradíssimo da infância. Para onde iria? Quem levaria? Ia para o mar logo ali na Praia do Centro. Ladeando o canal havia restaurantes e a Praça da Matriz. Depois se chegava a uma extensão de terra que dava no cais do porto, hoje levando barcos de pescadores e de turistas. Olhando o porto A Igreja de Santa Rita onde fica o Museu de Arte Sacra de Paraty com suas relíquias de prata. Essa igreja é aquela do famoso cartão postal da cidade. Isso foi o que pude conhecer de Paraty na minha primeira viagem. Infelizmente, o cansaço dos setenta e quatro anos da minha avó não me deixou prosseguir e nem entrar em lugar nenhum. Falei do museu porque o conheci na segunda viagem também com tio Orico, mas já com autorização dos meus pais para ir e vir e com recomendação à minha avó que não me detivesse nas minhas andanças porque aturar aquele garoto reclamando dentro de casa seria insuportável para qualquer mortal (eu reclamava mesmo o tempo inteiro quando tinha meus projetos frustrados por outra pessoa).

Voltei para o estacionamento resmungando e minha avó dizendo que não tinha culpa por estar cansada. Eu dizia que não havia problema. Eu daria uma volta e retornaria. Ela dizia que não poderia eu entrar sozinho no museu e nem subir a colina do outro lado canal porque não havia autorização para crianças entrarem sozinhas no museu. Eu contra-argumentava que poderia sim entrar sozinho no museu e que já havia visto várias crianças entrando sozinhas no Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, onde fui com a minha professora Denise, a estagiária Ana Lúcia e meus colegas de turma quando tinha dez anos. Eu sabia com andar dentro de um museu, que não poderia por a mão em nada. Mas vovó Laura era irredutível. Parei de falar que era para ela não contar nada ao meu pai quando voltássemos para casa. Aliás, ali mesmo já levaria uma bronca do tio Orico se ela fizesse alguma reclamação. Contentei-me em ficar no estacionamento e depois aceitei quantidades homéricas de sorvete e bolo para aplacar minha frustração.

Voltamos para casa no final da tarde debaixo de muita chuva. A cidade ficou alagada. Mais tarde, quando voltei, encontrei a essa Veneza brasileira é que descobri porque a chamavam assim e que na realidade o alagamento não era devido a chuva, mas sim a maré que invade a cidade no final da tarde. Por isso suas ruas são em forma de calha. Na época do Brasil-Colônia, as águas servidas eram arremessadas diretamente no meio da rua. O mar entrava e levava os dejetos para o mar. Incrível é que nem uma gota entra em nenhuma das construções da cidade. Grande obra de engenharia. Aliás, outra característica interessantíssima do lugar é o fato de se olhar do mar para as casas e vê-las fechando a rua. Os portugueses ludibriavam assim aos piratas que pensavam a primeira vista que a cidade era muito menor do que na realidade era. Bastaria qualquer um deles entrar e fazer as curvas para descobrir da continuidade das ruas.

Por falar em piratas, lembrei-me do Forte. Nessa segunda vez fui ao Forte Defensor Perpétuo, onde fica o Museu de Arte Popular. A vista é muito bonita lá de cima. Numa das outras mais de vinte vezes que voltei à cidade, estava em companhia de amigos. Subimos até o forte e decidimos nos embrenhar pela mata logo abaixo. Idéia do Cláudio, marido da Heloisa. Fomos atrás. Claudete e Rita cansadas e sem costume de andar (meu Deus sempre há alguém perto de mim que não quer andar. Que coisa!) vinha resfolegando logo atrás. Caminhamos na mata a beira mar. Chegamos a um caminho sem volta. A maré já havia subido e não poderíamos mais seguir até a Praia da Jabaquara. Voltamos na trilha e saímos tranqüilamente pela portaria do forte já quase trancada (sou mestre em ficar preso em museus. Em Santiago fecharam o Museu Nacional na Quinta Normal e eu distraído na biblioteca da instituição tive de solicitar ao guarda que me deixasse, por favor, acessar o armário para buscar minha mochila com dinheiro e documentos dentro. Qualquer dia desses eu conto). Fomos a Jabaquara e lá encontramos um grupo de japoneses catando mariscos. Tomamos alguma coisa olhando o pôr-do-sol lindíssimo. Nunca saí da América do Sul até agora, mas acredito que o crepúsculo na Tailândia deveria ser como aquele daquela hora. Havia até orientais ilustrando a cena. Pena não ter na hora uma câmera na minha mão. Se hoje fosse este texto seria ilustrado com esse cenário. Foi mágico!

Voltamos a pé (e não havia outra forma) até o hotel, a Pousada da Daya. Estávamos mortos, mas felizes. Tomamos um banho e fomos para a Festa da Cachaça (Incrível! Não bebo e nem bombom de licor eu como, mas estava lá na festa da cachaça). Não entrei no pavilhão onde se degustava da “mardita”, da “água que passarinho não bebe”, mas me encontrava mergulhado nela, posto que estava em Paraty. Para todos uma terra de grandes encantos e que inebria e entontece sim, mas de tanta beleza.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 19/06/2010
Código do texto: T2329543
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.