Carmo

Sempre que li nas histórias infantis de contos de fadas europeus, ficava encantado com as vilas e aldeias descritas nessas narrativas. E na literatura de Monteiro Lobato, adaptada para televisão no seriado infantil “Sítio do Pica-pau Amarelo”. Eram mundos mágicos para mim. O Sítio inclusive, dialogava com vários contos clássicos infantis ou para adultos. Lobato era extremamente didático sem ser nem um pouco chato. Seus textos eram maravilhosos assim como a adaptação para TV também era primorosa (mas, depois de adulto passei a entender que são veículos diferentes e não há como se comparar linguagens exigindo-se de uma a expressão fidedigna da outra). As obras são, portanto, diferentes e não a mesma.

Único também era meu olhar. Queria de qualquer maneira conhecer o Sitio do Pica-pau Amarelo, o Reino das Águas Claras, o Arraial dos Tucanos etc... Queria ter uma avó como a Dona Benta, caçar como o Pedrinho (mesmo não gostando de carne), ter um amigo saci, comer da comida maravilhosa da Tia Nastácia e ter um boneco feito de sabugo de milho que falasse. Queria ouvir a boneca Emília tagarelando e as histórias do chifrudo rinoceronte Quindim. Aprendi desde muito cedo separar fantasia de realidade. Mas continuava a sonhar assim mesmo. Ainda bem! O que me restava, então numa separação de fantasia e do que chamamos de realidade? Ter um saci pererê como amigo não seria possível ainda que eles existissem. Minha personalidade não coadunaria com a deles por mais que os estudiosos de cultura popular digam que eles são como duendes brasileiros brincalhões. Meu jeito bem humorado, mas extremamente respeitoso não admite determinadas brincadeiras (desde criança nunca gostei de que escondessem objetos meus até me levarem ao desespero e nem fazia isso com ninguém). Brincadeira só tem graça quando ambas as partes riem e não quando somente um se diverte. Sempre tive isso em mente desde a mais tenra idade e pouquíssima maturidade. Hoje não fico mais irado como em criança, mas continuo a não gostar de brincadeiras que julgo de mau gosto. Tenho grande dificuldade em lidar com aquelas pessoas que dizem “Perco o amigo, mas não perco a piada”. O Saci seria igual a uma dessas pessoas inconsequentes. Conhecer o Reino das Águas Claras também seria impossível, pois tenho pulmões e não brânquias. Além do mais as únicas águas próximas à minha casa eram as da Lagoa do Boaçu (limpa, mas de turva pela quantidade de material orgânico do manguezal) e alguns canais poluidíssimos, que de claros não tinham nada. Ter bonecos falantes e vivos como o Visconde de Sabugosa e a Emília impossível. Mas ainda assim poderia simular diálogos com meus soldadinhos de chumbo (na realidade, guerreiros apaches, centuriões romanos e acrobatas todos de plásticos). Boneca de pano lá em casa existia. Não confeccionada pela tia Nastácia, mas pela minha irmã mesma, que catava os retalhos da minha mãe costureira. Um rinoceronte falante talvez fosse o mais difícil. Ainda que eles existissem e fossem domésticos e de pequeno porte, meu pai não os permitiria. Ele dizia que somente pessoas abastadas deveriam possuir animais de estimação porque as despesas para criar dignamente um animal eram muito grandes e acabariam por comprometer desnecessariamente nosso orçamento. Como moramos num lugar que na época da minha infância era muito verde e com uma fauna relativamente rica para uma cidade da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, realmente os animais de estimação eram supérfluos. Os gatos minha mãe tolerava e fingia não ver que nós os alimentávamos. Ela não gostava de desagradar minha avó (sua sogra), que não gostava de gatos porque achava que eram animais do mal e nem meu pai, que também fingia não saber do nosso carinho para com os bichanos sem dono. De vez em quando enxotava um deles e falava firme com a gente para não os acostumarmos mal (ele não tinha lido Exupéry, mas sabia que seríamos responsáveis por quem cativássemos). Papai sempre nos ensinou que tomava aquela atitude para o próprio bem da família e dos animais, que não poderiam, de forma alguma, ser molestados. Só tínhamos permissão para matarmos baratas, mosquitos, moscas e eventualmente aranhas e formigas caso entrassem em nossa casa. Mesmo assim de forma rápida e precisa para o bicho não sofrer tortura antes de morrer. Ensinava-nos também a deixar as goiabas dos galhos mais altos para os passarinhos. Era tão bom ver os sanhaços azuis em cima da goiabeira contrastando suas penas com o róseo interior dessa fruta.

Restavam-me, então, as caçadas do Pedrinho, os bolinhos da Tia Nastácia, as histórias da Dona Benta e conhecer o Sítio e o Arraial dos Tucanos. Tudo isso seria possível com ou sem fantasia.

Não caçaria porque como já disse não gosto de carne e também aprendi a amar e respeitar os animais independentemente ou não do vegetarianismo. Poderia, todavia, fazer incursões pela mata. Isso eu fazia mesmo. Não tínhamos uma floresta fechada como a do Taquaruçu, circunvizinha ao Sítio do Pica-pau Amarelo de Lobato. Meu bairro originalmente era coberto pelo ecossistema da Mata Atlântica, há muito tempo (desde o Descobrimento) assolado pela devastação. Há ainda uma área de proteção ambiental (APA de Guapimirim) composta por manguezais. Na realidade, caçava rãs com os moleques no brejo e nas poças d’água e saia catando plantas para transplantar para os jardins da minha casa criados por mim mesmo cheio de pedras de quartzo, granito e outras encontradas no caminho para a escola. Disso não tinha inveja do Pedrinho. Também vivia minhas aventuras (mais tímidas, sem onças, mas com algumas cobras, morcegos, urubus e cachorros muito bravos correndo atrás da gente). Comer os bolinhos da Tia Nastácia era fácil. As revistas em quadrinhos publicavam a receita. Era só pedir para minha mãe ou algum adulto fazer. De vez em quando comíamos os “maluquinhos” (maneira como a minha avó chamava aos bolinhos de chuva, feitos com farinha de trigo, açúcar, ovos, leite, uma pitada de sal e fermento em pó – o Pó Royal – e fritos as colheradas no óleo quente nos dias em que sair de casa para comprar pão era impossível pela chuva forte ou pela preguiça). E a Dona Benta? A da televisão, interpretada pela saudosa Zilka Salaberry, era adorável. Virou sinônimo de avó para minha geração. Mas a Dona Benta dos livros de Lobato era excelente para os seus netos, mas péssima para a sua cozinheira Tia Nastácia. Não vou entrar em detalhes, que não é o propósito aqui deste texto já meio alongado. Mas tenho razões muito pessoais para ficar triste com a personalidade dessa avó, verdadeira representante das antigas aristocracias rurais brasileiras. A história do Brasil explica melhor e qualquer fotografia de meus parentes maternos exemplificam o que sinto em relação à personagem (embora continue a apreciar e recomendar o texto lobatiano e reconhecer a importância da personagem por outros aspectos que um dia tratarei mais amiúde). Então fiquei com a minha vó Laura, com a vovó Geralda, com Dona Alcina (minha prima em terceiro grau e em primeiro de vovó Laura) e Tia Olívia, minha tia avó, cunhada de vovó Laura. Descobri que todas elas eram bem melhores do que a Dona Benta.

E o Sítio do Pica-pau Amarelo? E o Arraial dos Tucanos? O primeiro realmente existe e pode ser visitado. Fica na cidade de Taubaté, norte do Estado de São Paulo. Quanto ao Arraial dos Tucanos, não sei dizer se existe ou existiu tal qual na ficção de Lobato ou nas imagens da Rede Globo e da antiga TV Educativa (hoje Rede Brasil de TV Pública). Mas cidadezinhas semelhantes e sítios aconchegantes eram possíveis. Foi o que procurei viver no Carmo, cidade da Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro, na divisa com o Estado de Minas Gerais.

Minha família por parte de mãe vem do interior do Estado como já havia dito em outros textos meus (leia “Eram Natais” entre outros). Aliás, esse tema da origem da minha família é recorrente. Vovó Eurico e vovó Geralda migravam de terra em terra em localidades de Nova Friburgo, Cantagalo, Sumidouro e do próprio Carmo. Eram agricultores que dependiam da terra para plantar, mas não a possuíam. Somos uma família grande e heterogênea embora com alguns pontos em comum. Parte dessa família depois de muito tempo se fixou nessa bela e acolhedora cidade do Carmo e outra parte em Nova Friburgo. Há também alguns em Paracambi e em Miguel Pereira. Falo dos meus avós e dos seus irmãos. Quanto aos meus tios e primos a distribuição muda. Migraram para outras cidades. Entre elas São Gonçalo, onde nasci, e Rio de Janeiro. Meus avós foram dos que ficaram no Carmo. Portanto essa é por mim considerada como berço de minha família materna assim como Niterói é o berço da minha família paterna.

Como ia dizendo, o Carmo, cidade de apenas quinze mil habitantes, era para o garoto que fui o Arraial dos Tucanos. Há até aldeias. Refiro-me ao Loteamento Valparaíso onde meus avós passaram os últimos anos de suas vidas. A casa humilde ainda existe e é onde tia Luzia, uma das quatro irmãs de mamãe, mora. O Loteamento é um ligar muitíssimo humilde composto de uma praça, uma igreja, duas escolas de ensino fundamental, dois armazéns, duas pequenas chácaras e uma olaria distribuídos em cerca de meia dúzia de ruas (se não for menos) num vale separado das partes altas da cidade por um riacho com uma cachoeira bem aos fundos da nossa casinha. É um lugar bucólico, plácido, com cheiro de fogão a lenha. A comida é simples e gostosa. Os doces também. A gente é simples e tem sotaque diferente dos da região metropolitana assim como seus costumes também. Aliás, vivem diferentemente dos moradores do Centro da própria cidade e dos outros loteamentos. Era ali que procurava encontrar recriar o meu Sítio do Pica-pau Amarelo. Impossível até pelo tamanho e pela estética. Na infância não entendia que cada lugar tem sua importância independentemente de seu aspecto. Não há um modelo de cidade e nem uma estética universais, tão pouco um modo de vida igual para todos. Só lamentava. Onde estavam as chaminés de tijolos vermelhos num telhado de inclinação quase vertical e as lareiras? Onde as tortas esfriavam na janela com jardineiras suspensas? Eu queria uma paisagem européia para os meus sonhos de criança. Queria um sítio encantado como o de Pedrinho e Narizinho. Queria ir para roça e encontrar o tio Barnabé e o Jeca Tatu. Queria um mundo pitoresco e prontinho como cenário para minhas aventuras. Entendi que as chaminés de lareiras, os telhados com altas inclinações, a neve e as estações do ano bem definidas são impossíveis aos países tropicais, como o Brasil, onde neve só existe em raríssimos pontos da Região Sul nos meses do nosso inverno, não no Natal, época do começo do verão. Tudo bem. Isso eu entendi. Aprendi também a amar os nossos bichos, saber que temos onça e não leão, veados e não renas etc... e que alguns dos nossos animais são únicos e endêmicos. Cada país tem as suas peculiaridades e as suas belezas (e mazelas também). O próprio Lobato não criou um sítio à moda européia e nem a televisão o exibiu assim. Mas a televisão o exibiu perfeito, de uma perfeição com estética brasileira, mas perfeito. E o Valparaíso e o Sítio do Tio Dejinho? Não eram iguais aos da televisão. De certo que não. Até porque estamos distantes de Taubaté. Lá o solo é outro, o clima é outro, as pessoas são outras. Não havia como ser igual. Poderia ser no máximo parecido. E era. Assim como o atual sítio da minha prima Márcia o é semelhante aos da ficção. Só que essa semelhança se dá não exatamente na estética ou na magia da narrativa dos textos literários. Essa magia vem de um modo de vida simples e num ambiente menos poluído.

Não tive o meu Sítio do Pica-pau Amarelo visitado por piratas, anjos da asa quebrada, sábios e viajantes de todo o mundo e de todas as épocas, mas tive e tenho e sei que terei sempre uma história de vida rica e feliz que posso compartilhar quer na festa do Carmo, quer nos encontros em família ou aqui nesta crônica que fala duma cidade aconchegante e agradável, banhada pelo Rio Paraíba do Sul.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 19/06/2010
Código do texto: T2329535
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