A vida, há muito tempo, só passava na folhinha pendurada na geladeira desde o natal, presente do mercadinho da esquina onde fazia compras para pagar no final do mês. Seu ano começava assim, com a troca da folhinha onde cada mês trazia estampada a imagem de um santo. Tinha o cuidado de riscar, todas as manhãs, antes de sair, o dia que ainda iria findar. Acabado o mês, retirava a folha, recortava o calendário e guardava a imagem do santo ou santa, dentro de uma Bíblia que não usava mais.

Pelo tempo que fazia aquilo, qualquer dia teria que organizá-las em um álbum, talvez, pensava sempre quando via o volume de imagens bem acomodas entre tantas folhas do livro. Jogar as imagens fora, nem pensar. O medo de um castigo, que vivia muito bem escondido em seus pensares, não permitia. Senão, o medo, a culpa: jogar fora um santo? Como podia?


Aquela vida pacata, de coisas certas, quase insignificantes é verdade, era seu único bem. Filho único na faculdade, o que lhe tomava grande parte do salário; mulher caprichosa, compreensível e batalhadora como ele, tudo bem organizado. O filho não era lá um gênio, mas teria o estudo que ele não teve. A mulher, não era nem bonita nem feia, mas marcava certa presença quando se arrumava. Ele também não era lá essas coisas. Um chefe de escritório de contabilidade que afinal, não tinha muito o que reclamar da vida.

Podia, uma vez por ano tirar alguns dias de férias na praia, tinha alguns amigos chegados, que vez ou outra apareciam para assistir um joguinho. Vida é assim mesmo. Vai-se tocando.

E iria tocando se não fosse o mal-estar de receber um cobrador na porta de casa, no exato momento de sair para o trabalho. Não entendeu a dívida, não entendeu a cobrança, não conseguiu chegar ao escritório, passou o dia perambulando nas filas dos bancos, onde cada gerente parecia ter decorado o mesmo discurso.
 
Bancos com os quais nunca trabalhara, onde jamais tivera feito algum depósito ou retirado qualquer quantia. Se não tivesse visto os boletos, se não tivesse visto os contratos, não acreditaria. Mas, como?

Já faz um bom tempo que tenta provar que ele não é aquele. Não fossem os santos, a compreensão do filho, a paciência da mulher... Logo ele, que tanto sonhou, secretamente, ser outro.
Eliana Schueler
Enviado por Eliana Schueler em 18/06/2010
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