O terno, a gravata e outros desgostos
Se é verdade que um homem feito eu, de feitio ordinário e afeiçoado ao povo, não se pode auto-proclamar um filósofo altíssimo, também, à luz da democracia, nada o (me) impede de dar umas tacadas, bem como nada impede o leitor de não lê-las.
Vejamos, por exemplo, o que se pode dizer, como quem nada diz, sobre a moda – claro que não vou abordar o tema com uma discussão sociológica, antropológica ou com nada que termine em ógica: se é pra passar vergonha, passo-a em tom coloquial – aliás. acho que a expressão “coloquial” já se tornou culta…
Mas, vamos lá:
Muito tenho divagado sobre o sentido de certas coisas, e sobre o fato de a razão de existirem ser mais fraca que a razão de não existirem. Outro dia eu assistia a um documentário sobre moda (com minha cara de tabacudo), quando um estilista gordinho disse algo que me deixou profundamente impactado: perguntado sobre a extrema magreza das modelos, ele cruzou os braços, erguendo um antebraço à altura do queixo, que apoiou com a palma da mão, e tacou: “elas são assim porque o destaque é na roupa; elas são meros cabides…” e riu sarcasticamente (ou o sarcasmo pertencia à minha perplexidade, sei lá). Aí eu me revoltei, quase engasgo: porra, nunca vi o acessório ser mais que o principal! Veja o absurdo: estamos falando de beleza e botamos a mulher à parte! A mulher, vocês entenderam?; a mulher nada significa pro vestido! Não posso conceber uma contemplação de beleza em que uns panos vençam quem a infinita poesia de todos os tempos adora, canta, sublima (e até consome!) por uma futilidade, por algo que pertence à doença estética dos frívolos. Não posso entender, também, que mulheres (e estas têm um jeito altivo, emancipado – dão até medo) permitam ser o objeto que pertence à coisa e a leva pra passear…
No vórtice dessa revolta, desentendi-me também com um velho desafeto (que para mim é como um dos duelistas do conto, que passam anos sem fim duelando, sem cessarem o ódio recíproco nem seu amor à honra): que se chama o combinado terno-e-gravata. Não entendo porque tenho (eu, que sofro de enxaqueca desde a infância!) que, sob o sol de Recife, usar uma roupa que é um claustro, e cuja opressividade é quase algemas. Vejam que, pra começar, a gravata já traz em si o sentido de coleira, o que é a submissão do coitado do cara à máquina do trabalho exagerado – por sinal, além de aquecer o corpo, ela diminui o fluxo de sangue ao cérebro, contribuindo pro emburrecimento do indivíduo, o que facilita a aceitação do aperto. Depois, tem-se o paletó, objeto mais inimigo do abraço que há, porque, em seu desenho tosco, tem umas costuras que dificultam o erguer os braços e se, mais que erguê-los, os abrimos, o paletó dispara uma série de mecanismos de contenção: se espicha feito asas de morcego (afugenta); as ombreiras se procuram a quase tocar nossas orelhas (ameaça satanicamente); as mangas encurtam e todo ele parece nos puxar pra baixo de novo, pra reclusão de si, o fechamento em si, a solidão outra vez, como uma ordem de comedimento apoiada pela gravada que, diante do gesto, aperta automaticamente o pescoço (uso de recursos mecânicos).
Menos revolta dedico às calças; só critico o fato de não suportarem uma carteira sem desengonçar e de se encurtarem demais quando sentamos – além de, em cima de uma motocicleta, serem deselegantes até prum sem-noção feito eu. Os sapatos, confeccionados pra pisar em chãos que não se parecem com chãos, deixo-os quietos – respeito a sambistas, sapateadores e outros cujo talento consegue salvá-los das trevas.
Enfim (tô exausto…), se não posso me livrar do terno (ou passo calor ou passo fome…), posso fazê-lo quanto à mulher vazia. Posso, além do mais, criticar o casal que passa: ele, orgulhoso, com sua roupa formal, suas ombreiras, seu signo de distinção; ela, magra, cheia de quinas, usada por seu vestido. E posso, sobretudo, crer que meus motivos pra usar terno são diferentes dos dele, e que jamais uma mulher daquelas, por melhor que seja a ilusão de seu perfume e seus olhos lunares, sentará ao meu lado nesta mesa do café – muito menos num boteco.
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