ARGENTINA, MERCEDES SOSA E JORGE LUÍS BORGES
GOSTO DA ARGENTINA. E DAÍ?
Nelson Tangerini
Após a goleada da Argentina sobre a Coréia do Sul [4x1], fui trabalhar com uma camisa azul clara e branca em que se lia: Argentina.
Na escola, professores, funcionários e alunos me perguntavam por que vestia a camisa do “inimigo”.
Eu queria mesmo criar uma polêmica. Porque sou leitor de Jorge Luís Borges e fã de Mercedes Sosa. E porque admiro a luta das Mães da Praça de Maio e conheço a História do sofrido povo argentino, vítima de uma feroz e humilhante ditadura militar.
E eu tive de explicar tudo isto a pessoas que não viveram essa época de trevas ou que não sabem o que aconteceu com los hermanos.
Conheci Mercedes Sosa pessoalmente. Meu amigo Roberto Carlos Costa de Oliveira [já falecido] e eu fomos assistir ao show da cantora Argentina no Estádio Caio Martins, em Niterói. Não me lembro a data. Lembro-me, porém, que Mercedes estava proibida de pisar solo argentino e que estava mui nervosa por estar pisando o solo de um país irmão. Uma bomba explodiu na platéia, deixando todos muito assustados. A cantora acalmou o público e prosseguiu cantando e falando da ditadura militar Argentina. Após o show, Roberto e eu tentamos falar com ela e não conseguimos. Seu empresário, argentino, um tanto fechado, reservado e receoso, nos disse que poderíamos encontrá-la no Novotel, no centro de Niterói.
Pegamos um táxi. Saímos dali afoitos. Fomos direto para o referido hotel, onde o tal empresário já esperava por nós. Era justificável a sua preocupação. O Brasil ainda era uma ditadura – não tão rígida quanto a da Argentina. Mas era uma ditadura. Uma ditadura que agonizava. E era desmoralizada. Daí a sua preocupação comigo e Roberto. O empresário pediu que esperássemos Mercedes na sala próxima à recepção, dizendo-nos que a argentina logo viria ter conosco.
Ficamos ali sentados esperando a cantora. Nada. Mas não desistimos. De repente, vejo os pés e as pernas de Mercedes Sosa descendo as escadas e, depois, caminhando em nossa direção. Emocionados, Roberto e eu não sabíamos o que iríamos falar. Beijamos Mercedes. Falei-lhe que estávamos ali porque éramos fãs dela e que apoiávamos o processo de redemocratização da Argentina. Pedi, lógico, que ela autografasse um cartaz do show que trazia em minhas mãos. Depois, ela nos agradeceu a manifestação de apreço, falou da ditadura, de direitos humanos e encerrou a conversa nos dizendo: “Somos todos hermanos y debemos nos unir por la democrácia em América ”.
Falei a todos sobre este encontro. E falei sobre as crianças que os militares roubaram de famílias de presos políticos argentinos inconformados que lutaram contra o regime desumano e opressor. Milhões de seres humanos desapareceram e jamais foram encontrados.
Ainda assim, houve quem dissesse: - E eu com isso? – O que tem a ver futebol com política? – Será que um argentino usaria a camisa da Seleção Brasileira? Não vou discutir com quem não lê e desconhece o passado recente da irmã Argentina.
Quanto a Borges, falei sobre ele em um poema de meu livro Cidadão do Mundo, publicado pela Editora Achiamé, em 1995.
“Borges me ensina a viver”, escrevi. Também amo os livros, a literatura, a filosofia, a geografia, a história, o conhecimento. Não conheci o poeta argentino pessoalmente. Não troquei cartas com ele. Mas posso entender o que Jorge sentia. Admirava sua paixão pelos livros de sua biblioteca. Eram, talvez, os filhos que nunca tivera. Admirava sua vasta sabedoria literária. Cego, impossibilitado de ler, pedia alguém para ler para ele alguns versos de Virgílio ou de Homero. Andava pelos corredores de sua vasta biblioteca e tocava suas velhas mãos nos livros, que, certamente, lhe respondiam em silêncio, retribuindo o amor borgiano.
Em 1937, o jornal La Nación, de Buenos Aires escrevia maravilhas sobre a peça Gol!, escrita por meu pai para a Cia. Jardel Jércolis, que se apresentou com sucesso na capital argentina. Lá está o nome de Nestor Tangerini. Guardo até hoje, com muito orgulho, o recorte deste importante e imponente periódico, que não emudeceu e não sucumbiu diante de uma ditadura cega, ignorante e feroz.
O time de Maradonna e Messi goleou a Coréia do Sul por 4x1. Minha alma latina, entre amarga e sentimental, me fez lembrar de todos esses tristes momentos. Para melhorar meu astral, talvez seja melhor dançar um tango argentino. Vou seguir os conselhos do poeta Manuel Bandeira.
Nelson Tangerini, 55 anos, é escritor, jornalista, poeta, compositor, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini, e da ABI, Associação Brasileira de Imprensa.
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