Crônica do Cana (3) – Chacina em alto-relevo

Advertência:

“Se você busca em crônica só o ameno e brasileiro comentário do cotidiano leve, salte este texto (por amor de Deus); publico-o cheio de interrogações pessoais, sob o peso de toneladas. Não sou fã da melancolia, mas sou um ser humano.”

O Autor.

Vê esta casa, toda caiada, que o vento da serra refresca? Ontem uma menininha de quatro anos brincava com um carneirinho, no terreiro, enquanto um homem, com seu alforje de caçador, sentado na varanda, esperava o pai dela chagar.

[Dos escritores que foram à guerra, Pablo de Carvalho talvez seja o mais antiprivilegiado: vê uma guerra que se acaba nunca, e imagina a criancinha brincando com um carneirinho, em vez do avanço da infantaria]

Vê este quarto, de mobília humilde? Vê esta cama, agora sem colchão? Ontem três adolescentes estavam aqui, juntinhos, mas esquecidos da paquera: estavam amarrados entre si, por trás, nos pulsos e calcanhares, e havia um bedel na supervisão: o amigo do homem que, da varanda, via a garotinha de quatro anos brincar, à plena doçura, com o carneirinho.

[Dos cronistas que foram à praça, Pablo de Carvalho seja talvez o mais ordinário, porque o céu que vê é quase sempre em ponta-cabeça, o povo que abraça é de militar muito pouco, e a estátua que o inspira vale só um epitáfio]

Vê esta porteira, que abre a fazenda pro rio duro de asfalto? Ontem, por ela, passaram o homem que o homem da varanda (vendo a criancinha brincar com o carneiro) aguardava, acompanhado sua mulher, que, de sua vez, esperava um filho do homem que se dirigia à varanda em que outro homem o esperava vendo sua filhinha correr atrás do carneirinho, saltitantes, tenros, encantados.

[Dos lazarentos e amaldiçoados que há a compor pelo mundo, Pablo de Carvalho certamente é dos mais desgraçados porque, vestido a desconforto em sua pose de Delegado de Polícia, chafurda, ereto e solene, sobre vísceras decompondo: mosca de óculos e caneta na mão]

Vê o que não se vê nesse silêncio da planície até a serra? Vê não – que bom! Mas eu tive de ver, imaginar, cheirar, sentir: o homem da varanda recolher a mulher grávida ao quarto; o outro homem, no terreiro, executar o marido que a trazia com um tiro na nuca; juntarem-se depois os dois assassinos casa adentro e, um por vez, atirar nas cabeças dos adolescentes amarrados (o último morreu de olhos arregalados, estupefato de espera, paralisado no pavor). Depois, de modo muito simples e direto, disparam no rosto da mulher grávida, cujo feto de seis meses (imagino; tenho muita desgraça que imaginar) morreu afogado numa piscina sangrenta, descobrindo desde já e pra sempre que a vida é curta.

Por fim (meu Deus, é preciso escrever?!...), levam a garotinha de quatro anos de idade, com suas pernas doces carregando seu tronco rígido sob o choro perdido e desesperado (dentro da fragilidade, da pequenez do corpo, da incapacidade de discernir; da inocência), a um quarto separado (de regra, há censura contra crianças participarem de coisas adultas), deitam-na sobre a cama, dão um tiro em sua nuca, cujo projétil lhe sai pela boca e faz sua língua pender; em seguida, disparam acima de seu olho, na cabeça que se debate, e dão mais um tiro no crânio, abaixo dos cabelos imaculados (salvo a orla de sangue e massa encefálica), e botam-na pra dormir – o carneirinho chega ao quarto, e não sai de junto da amiguinha. Na parede, espirros de sangue, borrifos de sangue e tecido infantil – se eu achasse, neste momento, que a poesia serve pra alguma coisa, usaria uma composição de flor.

[Dos ficcionistas que há na Terra, Pablo de Carvalho é talvez o mais injustiçado, pois lhe é dado escrever, por ofício mais que arte, tanta coisa apartada da mentira]