Canção Adaptada
Canção Adaptada
Não teria sido nem importante atinar, sequer por um esgar, como tudo começou, com ou sem mancada, pois testemunhas apontaram, embora nenhuma delas parecesse interessada.
Conta-se mais ou menos assim, que 5 ou 6 músicos esparsos, vindos cada um de uma noitada, se encontraram numa praça, no final da madrugada. Você, o que tem aí? Tenho um cavaquinho. E você? Uma guitarra. E você? Um violão. Outro tirou da maleta uma flauta, parece que um trazia pandeiro, outro sei lá o que. Alguém perguntou: quem conhece “Chega...”? Um músico retardatário, que se dizia partidário de Camões e farto de tocar por tostões, e que trazia um teclado, disse que conhecia de cor e em dó menor, a letra e a melodia, com absoluta primazia. Puseram-se a tocar, no romper da aurora, com passarinhos em demasia, quando surgiram duas mulheres, uma delas relaxada, preparando-se para o jogging, enquanto a outra imprecava, com talão de cheques em punho, sobre a conta atrasada. Sua amiga porém absorta, com um que de marota, pôs-se sem desdém a cantar: “Vai minha tristeza e diz a ela que sem ela não pode ser”. A estressada ficou pasma, e vendo um motoqueiro, a caminho do serviço, chamou-o com um psiu, ao que ele ficou assustadiço: faz favor seu moço, desconte esse cheque no posto, veja aquela família ali na calçada, com fome e desamparada, com frio, leva a grana pra eles e volta pra cá, vamos fazer um trio. “Diz-lhe numa prece que ela regresse porque eu não posso mais sofrer...”. De súbito chegou uma viatura e ao ver a família ali, do outro lado da calçada, maltrapilha e esfaimada, com notas novinhas na mão, quis indiciar, mas o sargento era velha guarda, ao ouvir a melodia, titubeou e coçou a fronte, engrossando a cantoria: “Chega a realidade não há paz não há beleza...”. Nisso vinha o fruteiro, carregando suas bananas, o dia já raiara, ele ficou cismado, com as flautas e o alvoroço, oferecendo sua mercadoria à família, frutas frescas sem caroço. Por cinco minutos talvez, muita gente passou, ouvindo os músicos, os guardas, as mulheres e o motoqueiro, o fruteiro e a família: “É só tristeza e a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai...”. Uma turma que passava, indo para o escritório, por ali se deteve e chegou atrasada, encontrando o patrão de suspensórios com estranha risada, acentuando no refrão: “não sai de mim, não sai de mim, não sai”. O patrão, que se dizia embasbacado, contou que ali era local de riscado, mas que preferia que cumprissem meta e não horário, e se cada um fizesse a sua parte..., mas não terminou a frase, e passou assoviando sem alarde. Na saída do escritório, viu seu sócio compenetrado, gaguejando sobre o erário, e que passara numa praça, e vira uma família, mais um coro muito afinado: “Mas, se ela voltar que coisa linda! Que coisa louca!”. Do outro lado da cidade, a notícia se espalhara, a família tinha parentes, que também eram carentes, e que viviam em calçadas, embora ninguém saiba por que, já estavam cantarolando, de um jeito meio grogue, a mesmíssima balada: “Pois há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca”. Dez da manhã e o bairro todo, deste lado da cidade, cochichavam de casa em casa, que nesta manhã qualquer, nem mesmo um incidente sequer, havia acontecido. Os aborrecidos se calaram, os vencidos tagarelaram e os doentes do hospital, que não puderam se conter, falaram que a vida era um quintal e iam um atrás do outro, sem medo e sem desejo, engrossar esse cortejo. Onze horas lá na praça, os músicos se cansaram, roucos de tanto harpejo, sequiosos de um refresco, quando um moço apareceu, trazendo um baixo pra ajudar, na canção que não tinha preço e afinou seu instrumento, começando a dedilhar: “Mas, se ela voltar que coisa linda! Que coisa louca!”, e as mulheres embaladas, o fruteiro, os guardas e a família, se apressaram a emendar: “Pois há menos peixinhos a nadar no mar, do que os beijinhos que eu darei na sua boca”. Meio dia e o local infestado, era gente que veio do centro, era gente da periferia, a praça parecia elástica, mais o povo do hospital, tanta gente cabia, a turma da ginástica e as famílias das calçadas, que souberam da parada, se juntaram sem porrada: “Dentro dos meus braços, os abraços hão de ser milhões de abraços”. O padre saiu correndo, e o prefeito ensandecido, gritando esbaforido, que isso não podia continuar, que ele iria multar, mas as famílias que não tinham nada, que viviam noutras calçadas, apareciam como ondas, davam as mãos aos curiosos, às bailarinas e aos poetas: “Apertado assim, colado assim, calado assim, abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim”. Uma da tarde helicóptero, TV e corpo de bombeiros, quem chegava não se continha, só o prefeito resmungava, o padre não orava, as beatas davam as mãos, às famílias das calçadas: “Que é pra acabar com esse negócio de você viver sem mim”. Os músicos da madrugada, esfalfados deram espaço, às famílias que chegavam, aos talentos que ousavam, empregando seus pulmões, na toada que não parava: “Não quero mais esse negócio de você longe de mim”. Três da tarde e os bombeiros, os poetas e os marreteiros, vinham de todo lado, junto com uma velha cansada, que se lembrava das famílias, que moravam nas calçadas, e de um jeito meio solto, persistiam sem engodo, na urgência desse coro: “Vamos deixar esse negócio de você viver sem mim”.