Alice e Nicolai *
Porque um dia, todos os anjos cairão.
A manhã finalmente chegou, após uma longa e intrigante noite de guerra.
Nicolai acordou enroscado em dois ou três pedaços de corpo. Enquanto isso, do outro lado do campo, Alice também acordava, sentindo dores tão inusitadas decorrentes dos estupros noturnos, que mal saberia dizer o que de fato aconteceu.
O céu enfumaçado e de certa forma enigmático, agora estava em paz.
As pessoas normalmente se arrastam como vermes pela terra. E Nicolai, assim como todo homem, era a mais deslavada pretensão, ao cogitar que sua sobrevivência era um designio maior. Não era.
Os corpos que já haviam morrido, tinham suas almas, naquele momento sendo queimada em outra guerra eterna, num lugar que o gentio chamou inferno. Alí sim, a esperança havia terminado.
Mas Nicolai e seu violoncelo, ainda tinha essa maldita chama que ilude o homem, e diz que os dias serão melhores.
Alice não tinha ilusão alguma a respeito do mundo. Na verdade, ter o corpo dilacerado a fez perceber que seu maior dom era a indiferença. Como pode não sentir nada, como pode não se ferir de fato?
E no meio da pilha de corpos que se dispunham de maneira tão deselegante, surge enfim a música. Nicolai enfim encontrou um propósito para a voz quase humana de seu instrumento: servir de passagem para almas ainda perdidas no compo.
O que Dvorak atirou sobre o papel durante 30 anos, serviu para que os espíritos entendessem a mais dolorosa das histórias: não há razão especial nenhuma pra circularmos nesse bloco de pedra gigantesco. Não há razão alguma para almejarmos a santidade.
E o que restou de retalho de partitura, atingiu os ouvidos ensanguentados de Alice. Essa sim, uma provável candidata a anjo, dada sua falta de emoção e senso de equilibrista de circo.
O desencontro de pessoas em campos de batalha, a música perdida que se insinua por entre a vegetação carbonizada...Tudo isso faz do mundo um lugar estrangeiro.O país é lugar nehum. É medo.
Nicolai encontrou uma estrada e se foi. Ele e seu violoncelo triste. Alice decidiu mudar algumas coisas partiu também. E eu, decidi não mais escrever sobre guerras, pelo menos por enquanto.
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*É altamente recomendável ler este texto longe de facas ou outros instrumentos cortantes.