LIÇÕES NA ESCOLA DO TEMPO

Trazia no rosto sinais inequívocos de felicidade. Parecia degustar, vagarosamente, a última gota do raríssimo mel em sua pequena taça. Em êxtase, transpirava alegria. Ele estava quase imóvel a observar o vento no seu incansável trabalho de soprar as últimas flores do velho ipê amarelo, que compunham, no chão, um tapete que contrastava com o verde do gramado da ESALQ. O cheiro da grama recém cortada e da terra molhada pela chuva , que caíra no dia anterior, despertavam emoções e sensações indescritíveis.

Antes mesmo de me dar conta dos sentimentos que aquela cena provocava em mim, ao ver-me aproximando-me dele , tratou de cumprimentar-me dizendo: meu amigo, estou comovido porque a última lembrança que trago na memória, de algo parecido com isso, já tem quase a minha idade.

Sabe, disse ele, diariamente eu passava por esses ipês, por esse céu azul, esse dourado leve dos raios solares, mas não tinha por eles esse sentimento, essa experiência de revelação e de reconhecimento que se mistura, hoje, com doses de nostalgia.

Olhava mas não via, essa acuidade me fora roubada pelo lufa-lufa incessante das doze aulas diárias. Não pensava, não via e não ouvia outra coisa que não fosse escola e aluno e, preocupado com os afazeres escolares meus voos nunca foram além de umas poucas quadras em derredor da escola. Essas “correrias” ocultaram-me esses preciosos momentos e, ao resgatá-los hoje, me pergunto como pude viver sem eles, alienado, perto e, ao mesmo tempo, tão longe da natureza exuberante desse lugar e tão perto de minha casa...

Sinto-me como alguém que morou nessa cidade mas não “viveu” nela. Dá pra entender isso? Me sinto renascido a cada instante.

Fiz o que tinha de ser feito - é verdade! Fiz o meu trabalho, os meus ideais dirigiam minhas ações, orientaram os meus juízos, suscitaram os meus esforços, e isso me fez bem, pois contribui para que tantos jovens desenvolvessem a capacidade de pensar . E o fiz com prazer nesses anos todos. Guardo boas recordações de tudo e de todos. Recorro-me à Adélia Prado para repetir “aquilo que a memória amou fica eterno”. Mas me vejo, hoje, como um poema que encontra, no papel branco, o espaço para ser escrito. Estou voando, brincando como criança...

Encanto-me ao observar esses pássaros, ouço os seus cantos e trinados, essa gama imensa de cores nas árvores, no céu... Onde eu estava esse tempo todo?

Hoje sei que o essencial mora na observação, disse ele, muitas vezes à nossa frente, ao nosso alcance e tudo isso passa desapercebido.

Percebi, então, que o que ele queria dizer com “experiência de revelação e reconhecimento, não era a experiência de ver coisas que não se via antes. O cenário que ele via não mudou, as ruas são as mesmas, os jardins são praticamente os mesmos. Mas, agora, essas ruas davam para um outro mundo, o jardim acabara de nascer para ele, pois tudo, agora, estava banhado por uma “luz antiquíssima e ao mesmo tempo acabada de nascer”. Nada mudou, mas mudaram-se os olhos. Portanto, tudo mudou.

Eu senti, naquele momento, que mais que desabafar, ele queria resgatar um “tempo perdido”. Na verdade ele poderia recuperar tudo, menos o tempo passado. Mas, agora, o tempo parecia longo, pois ele entregava a alma a cada momento de um dia feliz. E isso o tempo lhe ensinara.

Não vi nele, em nenhum momento, sinais de tristeza. Entendi o verdadeiro milagre que faz brotar, do velho caule, novos ramos para que, esticados ao sol, possam produzir, ainda, novos frutos. Talvez seja isso que torna o homem mais experiente, paciente, tolerante, sábio , faminto de beleza e alegria, apto a ter um caso de amor com a vida, permitindo que o vento enfune as velas do velho barco e o arrebate novamente, com grande felicidade, mar adentro.

Muitas vezes a rotina é bem vinda porque permite que a gente não tenha que fazer escolhas o tempo todo. Talvez a rotina seja a fuga ante a força, mas pode nos proibir de enxergar um mundo lindo que a gente nunca explorou ou deixou de explorar porque nunca abrimos o olho pra ele.

Angelus Silésius, místico medieval para quem teologia era poesia, escreveu: O homem tem dois olhos. Um somente vê o que se move no tempo que passa. O outro, aquilo que é divino e eterno.

Acho que foi isso que aconteceu com ele. Naquele frescor gostoso da manhã, ele contemplou a graça de estar em comunhão com a vida. Ele estava amando, eternizando a beleza num momento.

Oscar Wilde, escritor e dramaturgo irlandês, escreveu: “Amar a si mesmo é o começo de um romance que vai durar a vida inteira”. Wilde dizia que essa era a sua fórmula de felicidade.

Mas, como conhecer e avaliar a felicidade, se não tomarmos lições na escola do tempo ?

Carlos Roberto Furlan

Eng.Agrônomo/Professor