MINHA AMIGA
 
Tenho um intervalo de serena consciência antes de tomar os remédios de todo dia, disciplina de mais de dez anos. Que cumpro e mantenho a saúde parecida como normal.
Quando acordo e levanto para o dia começar, tenho um intervalo de tempo precioso, de um tempo pequeno, mas sem as medicações ingeridas. Um momento limpo, vivido sem influência de qualquer droga. Organismo está puro e limpo. Saúde.

 Hora em que tenho o pensamento limpo e íntegro. Inteligência, lucidez, poesia. É um intervalo de vida sublime de ver as verdadeiras cores e sentir a tranqüilidade de viver e ver. Tudo com seu real valor. Sabor do ar e da percepção nítida, ampla.
 Dei uma pequena volta lá fora. O dia está frio, céu azul e sol. O verde de tudo está no seu melhor.
Voltei ao quarto; caderno e caneta na mão, o que me faz bem. Posso desejar escrever. Pensar e sonhar. Liberdade plena, que sensação boa.

As meninas já escancararam a casa toda.
Entraram o ar frio e a claridade, quase perco a privacidade. Dispensei abrirem e arrumarem o meu quarto. Quero solidão, mas não é solidão de sofrimento, é solidão de liberdade de pensamento. Paz. Calma. Um reencontro comigo mesma. Os olhos não olham, pensam.

Há dias em que não interessa o sol, o clima, a natureza. Nem os bichos. Muito menos as pessoas.

Tudo é menor que o pensamento calmo, serenado. Quero o conforto da reclusão. Sem adornos. Sem complementos.
Esta racionalidade livre e de mãos dadas com o coração tranqüilo é um estado de domínio do pleno, de caminho sem pedras, algo pouco comum, mas que às vezes, chega e reconquista seu lugar perdido.

E domina. Há que aproveitá-lo, pois que é breve. É um estágio pequeno, passageiro, raro.

Por isso retornei ao quarto e fechei a porta, mas a Pitinha me rodeando os pés, conseguiu penetrar antes que a porta fechasse.
Não a queria. Mas ela queria. E é rápida. Conseguiu e deitou ao meu lado, absorta neste bem estar que é meu e já está tranqüilo. Dorme.
 
É um momento supremo, mesmo que breve, em que eu sinto que não preciso de ninguém, nem aspiro ninguém. Nem desejo nada. Sem questionamentos. É o bom da gente que vem à tona e prevalece. É o oposto da depressão e da alegria do prazer. É o equilíbrio do espírito. Nada quero além do que sou neste momento.
Sou plena. E sou nada. É tão bom.
Vejo com clareza tudo. Mas tudo não me desperta o menor interesse.
 
Nada é mais completo que este momento de descontração, de liberdade de pensar e de sentir, e não preciso usá-los, pois estou acima do pensamento e da emoção.

Ou melhor, sem pensamentos, sem emoção. É a liberdade de até dispensar definições, adjetivos.
A gatinha adormecida ao lado, por certo, está sentindo o mesmo. Não me cobra atenção ou carinhos. Liberta-me de sentir, e não sinto.

Posso pensar, mas não vou perder tempo, pois acordei com este estado bom que dispensa qualquer coisa. Uma reclusão momentânea, que dispensa cuidados com qualquer coisa, qualquer questão ou qualquer pessoa.

A pena vai escrevendo com prazer deste momento privilegiado que, por experiência, sei que é breve. Ficar só e bem. O ver claro então nota.
 
É a amiga que se encontrava distanciada, que voltou, chegou assim de surpresa com o ar mais natural, como se não estivera fora tanto tempo. Saíra tão discreta, num afastamento imperceptível como é dela mesmo ser.

É a melhor amiga. Ela é assim. Tem seu jeito próprio de usar liberdade, de ausentar-se, de assumir-se. Eu a respeito. E tanto, que até a esqueço, quando tira tempo independente, pois ela está sempre acima de toda e qualquer coisa.

Já eu me envolvo com as notícias cotidianas, os sofrimentos alheios, as necessidades pedindo solução e reparos. Os filhos, cada um na sua e com suas questões. Os acontecimentos.

Mas a minha amiga voltando, é o contrário de mim. Ela não pensa em nada e nem em ninguém.
Aliás, ela não pensa. Não pensar e não sentir é lucro. É completamente solta e tem domínio próprio. Nada quer nem deseja porque está acima desses cismares. Ela é completa. Tem o domínio.

 Seu retorno é bem-vindo. Quando me dá a mão, quando estamos de braço dado andando por aí, nossos corações batem no mesmo compasso. Nossa união é total e nos completamos. É a única pessoa em quem eu posso confiar totalmente. Em quem acredito mesmo.

A gatinha se espreguiça ao lado dando sinal de sua presença. Bichinho absorve e sente tudo da gente.

Amiga companheira, bem vinda. Você andou fora nestes dias. Deixou-me só neste lugar do passado e com os problemas antigos e pessoas novas. Nem me preveniu! Eu me distraí e nem notei o seu afastamento. É minha querida, eu te amo mais que a qualquer pessoa do mundo. Unâmo-nos. Você me faz tão bem. Eu absorvo o seu calor, o vigor, sua sabedoria, seu controle, seu prazer de viver.

Chegue.
A casa é sua. Eu sou a sua casa. Eu sou também a sua melhor amiga.

Foi sempre assim, toda a vida, não é?