Ah... Môr...

Atendendo a pedidos de milhões de e-mails (não cheguei a ler todos), vou explicar os meus conceitos de amor. Isso não é cartilha nem receita de bolo. É apenas uma forma de ver, e se seu caso se encaixa numa ou outra situação não faz a menor diferença. O amor é teoricamente lindo, é aparentemente lindo, mas é daquele tipo de droga ou remédio que, se errar na dose, o risco de matar o paciente é grande. Amor é moda, é comportamento, a gente faz por imitação, a cada época se ama de uma forma e a cada era se permitem mais ou menos coisas.

Vamos deixar de lado nomenclaturas bobocas. Esse negócio de eu te amo, eu te adoro, eu gosto muito de você, você é tudo pra mim, vou com você onde você quiser, você é uma pessoa incrível, entre outras abobrinhas, não dão dimensão de amor e o que cada termo desses citados quer dizer de fato é, lá no fundo, uma interpretação pessoal de cada vivente, ou seja, não quer dizer nada. Nem tem importância. É uma desnecessidade (adoro escrever essa palavra). O que se tem como certo é que amor é uma coisa e tesão é outra, mas quando estamos resolvendo a questão do tesão costumamos achar ou apenas dizer que amamos o outro profundamente. Não é verdade, mas como todos mentem a mesma coisa acabam por achar de forma conveniente que é assim mesmo.

A coisa é assim. O ser humano é um mamífero como outro qualquer. É só abrir e conferir que os veterinários e os médicos concordarão em 100%. Tem tetas, óvulos, espermatozóides, leite branco, a procriação se dá por inserção do pênis do macho na vagina da fêmea com a ejaculação do esperma que fecunda o óvulo. Todos nascem feios, amassados e se não mamarem morrem. Então somos todos mamíferos. E os mamíferos têm a característica de sua espécie. Golfinhos, baleias, peixes-boi, etc, nadam, e são capazes de ficar minutos a fio sem respirar. Os morcegos voam. Alguns têm a inteligência mais privilegiada, outros são de uma burrice de dar dó (com exceção do próprio burro).

O que tem o cérebro mais desenvolvido é o ser humano. Talvez por isso ele acredite que é diferente dos outros. Esse pensa, como todos os demais, mas seu cérebro é capaz de ver e fazer coisas que os outros só conseguem fazer por instinto. O que proporciona isso é a auto-consciência. Nós sabemos que somos o que somos. Os outros mamíferos não sabem. Nós sabemos antes que se mordermos nossa mão vai doer. Os demais, via de regra, só descobrem depois que mordem e nem sempre se dão conta que são eles mesmos que estão mordendo.

Então a inteligência privilegiada e a auto-consciência humana é uma característica que o mamífero humano tem e os demais não têm. Além disso, beije-o todos os dias, o que faz do homem um ser surpreendente, criativo e inventor é o fato de ter o polegar útil. Esse ato de poder pegar as coisas só consegue quem tem o polegar e pouca gente se dá conta de quanta coisa não seria capaz de fazer se não tivesse o polegar. Polegar útil, salvo engano, só primatas têm. E ainda duvidam do Darwin.

O problema é que o ser humano é, por natureza, por característica biológica, completamente sem culpa, um ser assassino, cruel, devastador, que tem um verdadeiro fascínio em matar. Em destruir. Mas como é inteligente e tem auto-consciência, conseguiu ver com o passar do tempo que se ele matava o filho de um, no dia seguinte estava chorando a morte do próprio filho que o outro vingara. Então se reuniram e, não por questões de amor ou caridade, mas apenas de sobrevivência, resolveram criar um sistema que, com o tempo passou a se chamar civilização. Daí inventam a religião para dizer que as leis são de Deus e não do “semelhante”, etc.

O que chama a atenção mas poucos querem ver é que uma das características humanas natas é ter liderança e dar um jeito de comandar pessoas. Como já dizia Chapolin Colorado, “sigam-me os bons”. Então na organização das “feras” humanas, os mais espertos viram rei e os menos espertos viram súditos obedientes e servis. E na vida o de cima evacua no de baixo mesmo. O passo seguinte foi inventar a sociedade e a família. A sociedade inventou as leis, e as cadeias e presídios para os que não querem se submeter a elas. Não há escolha.

E a família inventou um sistema onde pudesse haver proteção da prole. Um macho para caçar e defender e uma fêmea para procriar e organizar. Fazer funcionar. O macho não precisa ficar caçando fêmea para cruzar todos os dias, uma vez que as fêmeas humanas concordam em fazer sexo sem procriação para diversão e deleite, e os filhos nascem, e é preciso ter alguma coisa que “dê a liga” para que a união não se desfaça. O nome correto disso é amalgamar a relação familiar. Para isso inventaram o amor... e a paciência.

Veja que minha cachorra acabou de parir e eu quis ir até a esquina comprar uma ração especial para ela, cheia de frescuras e nutrientes, e ao ver que eu ia sair, simplesmente se levantou e deixou o rastro dos cachorrinhos que estavam mamando, e ficou prontinha para passear comigo. Isso não é amor. Tive que ajeitar todos os cachorros de volta. A Chula ama a mim que passeio com ela e a alimento. Ela sente que tem que cuidar dos filhotes, mas ela não sabe dos “cuidados extremos” que os bebês necessitam. Só os humanos, né. O resto nasce na terra, no mato, e vivem felizes até morrer. E é só crescer um pouquinho que a mãe esquece que tem filho e o filho se manda pra vida. É por isso que eu vendo os filhotes da cachorra.

Então vamos classificar de AMOR, amor e “Ah... Môr...”. Há sim um amor verdadeiro dos pais para os filhos, unidirecional, porque os pais têm auto-consciência que aquela criança é fruto de sua decendência genética, acha que é parte de si, inventa frases do tipo “sangue do meu sangue” entre outras breguices. Mas a gente ama mesmo. Mas só os filhos. Isso é AMOR. Depois há um amor ao próximo, também pela auto-consciência de que somos iguais e se ele sofre hoje e eu o ajudo, amanhã eu posso precisar e ele me ajuda. Amamos assim amigos valorosos, pessoas que nos tocam a alma, que se preocupam em saber como estamos, e assim amamos nossos irmãos e nossos pais. Só imagina que pais e filhos se amam de forma igual enquanto não se tem o próprio filho. A partir daí o pai e a mãe, tão amados, são rebaixados à condição de avós e serão amados se sobrar tempo.

E aí, para humanos tarados, existe o “Ah... Môr...”, aquele que nós gritamos gemidinho no ouvido do parceiro na hora que ele faz o que nós mais gostamos. Como é bom e fácil amar e deixar de amar as pessoas que só fazem o que a gente quer e gosta. Como é bom e fácil amar e ser amante de pessoas bonitas e gostosas, inteligentes e interessantes, organizadas e com conforto. Isso fascina e estimula o tal do “Ah... Môr...”. Esse “Ah... Môr...” é uma grande sacanagem. Ele é o único que leva o par de amados ao advogado e ao juiz para dizer que se trata na verdade de um indecente, de uma vagabunda, e por aí o nível baixa e o que já era um mero e rampeiro “Ah... Môr...”, vira uma espécie de “Ah... Morcega!”.

Eu AMO mesmo muito meus filhos, e tenho um enorme amor por pessoas que gostam de mim, se preocupam comigo e querem saber da minha vida. Com algumas pessoas a gente tem mais afinidade, outras um pouco menos, mas o carinho e esse amor é verdadeiro e recompensante.

Já o “Ah... Môr...”, etc, são contingências. Aparecem, desaparecem, quem queremos nem sempre nos quer e muitos dos que nos querem não estamos, digamos, ainda preparados, sei lá, a gente sempre inventa qualquer besteira na hora. Tanto o AMOR, como o amor em si, não esperam nada em troca. O bom está em dar o amor, sentir o amor, lidar com ele. Já o “Ah... Môr...” quer tudo em troca. Carro, casa, comida, 10 mil por mês, e muito sexo. Fazem desconto para os mais pobres: fusquinha, barracão, R$ 500,00 por mês, e muito sexo. Aí até um pouco mais.

Então AME seus filhos, ame seus amigos e pessoas tão queridas, mas vá curtir seu “ah... môr...”, e as sacanagens atreladas de mentiras, no escurinho do seu quarto. Afinal, sinceramente, só vocês dois, de verdade, acreditam que esse “ah... môr...” é amor.

Pior seria se nem nós acreditássemos.

Mais textos em www.zecaparica.com.br