Ilusória vida urbana
No caminho entre meu local de trabalho e o que, supostamente, deveria ser de descanso, vejo inúmeros sinais da falsa urbanidade que me cerca.
Logo na saída passo ao lado de uma magnífica pomba cinzenta, que talvez outrora tivesse sido branca, esmagada pelo movediço pneu de um rude caminhão. Um pouco mais adiante vejo o cadáver de um gato, inchado, vítima de sua própria putrefação. O que me impressiona é que, bem próximo, parece-me ver uma meiga criança, brincando com os restos mortais dos dois animais. No escárnio que se desenha nos olhos da criança percebo que para ela aquilo é bastante trivial, pois se não fosse o inconsistente pneu ter esmagado a ligeira pomba, talvez fosse o próprio gato que a viesse devorar.
Vendo isso, o gato pareceu-me inchado, não dos seus fétidos fluídos de gato morto, mas da decepção de ter visto o caminhão aniquilar o que imaginava ser seu possível banquete.
Experimentando esse substancial desvirtuamento da natureza do gato e da pomba, transformados de presa e predador em duas vítimas de um mesmo evento ocasionado pelo homem, parece–me que a vida é ainda mais fugídia do que cheguei um dia a considerar. A vida, nos olhos da criança, parece-me ainda mais tênue. Ela que é tão leve aos meus sentidos, quanto eram onerosas as tardes da minha infância, quando via-me sufocado pelo fervilhante mormaço, que me possuía após uma lauta refeição, composta por uma generosa porção de arroz e outra de trairas fritas, a beira de um caudaloso rio, sentado a sombra de uma pitangueira, e degustando um ilusório vinho, saído da umbrática prateleira de algum bolicho, de onde o inexistente bolicheiro o retirava, tão empoeirado que parecia ter saído da mesma safra do vinho da santa ceia. Ali, sob um escaldante sol no início da tarde de algum dia de verão, parecia que o rio fornecia-me, prazerosamente, o saboroso peixe, o arroz e o vinho, saídos da labuta de algum desconhecido lavrador e outro, ainda mais desconhecido, viticultor, a doce pitanga que poderia ser saboreada depois, e, ainda, o refrescante banho que bem depois lavava-me o suor e a alma, os quais escorriam, juntamente com a vida, ao longo das margens do rio.
Nessa nova perspectiva, o ambiente da minha infância, naquela época, revela-se infinitamente distinto do que vejo hoje, ao longo deste empoeirado caminho, o qual percorro de volta para minha casa, tão distinto quanto são diversas as noções, de vida e morte, da natureza do peixe saído do rio e da pitanga saída da árvore, ou o vinho e o arroz, modificados pela mão do homem para serem transformados em alimento para o próprio homem.
Voltando do meu devaneio pueril, vislumbro, furtivamente, nos olhos boquiabertos da criança, o terror que lhe causa a visão da vida da pomba sucumbindo sob o suave peso do pneu e do sofrível peso que a perda da presa, motivada pelo mesmo pneu, causa ao gato.
Certamente a criança, ao perceber que o gato definhou, vítima de seu imenso desejo de que a pomba estivesse viva e ao alcance de sua necessidade de saciar a fome, e que a própria pomba não sobreviveria ao gato, mesmo que sobrevivesse ao pneu, deve ter imaginado que seria ela, provavelmente, em um outro e talvez já próximo dia, a estar em uma situação de gato ou pomba, agravada pelo simples fato de que ela é privada das asas da pomba, que tornariam possível que voasse para longe dos pneus e, também, da astúcia do gato, que se faria necessária para que sobrevivesse, pelo menos, até que não houvessem mais pombas ou gatos e sim, somente pneus e crianças.
Brasília-DF, 11 de junho de 2010.