A NACIONALIZAÇÃO DE UM NOME
Sut? Como se escreve? Qual a procedência?
Aprendi a soletrar meu sobrenome antes mesmo de ser alfabetizada. Amadureci com as respostas formatadas, explicando a origem francesa com o detalhe de meu bisavô ter nascido em Lyon, ou quem sabe, na travessia. Fantasiei algumas inserções culturais. Alguns familiares especulavam uma tênue relação com a Alemanha, mas... Os personagens eram inatingíveis.
Diante de algumas inquietações, procurei a nonagenária Júlia, irmã caçula de meu avô Emiliano, e descobri alguns retalhos, principalmente os que foram cerzidos no território brasileiro e que encobriram as seguras raízes para a subida à árvore genealógica. O sobrenome havia sido aportuguesado – o Söut se transformara em Sut na performance da pena de algum burocrata de cartório.
Senti que parte de mim estava adulterada numa certidão perdida de significado... Minha descendência francesa estaria maculada? Ou tão somente a grafia do sobrenome?
As referências sobre meu bisavô se limitavam ao seu temperamento deprimido, ao seu profundo silêncio... Não recebi, em legado, pensamento algum, apenas um sobrenome e um enigma...
O olhar de sombras de minha tia-avó se acendeu nas lembranças remotas do que ouviu quando ainda era criança. Tia Júlia falava com orgulho e intercalava gestos infantis e maduros. A ocasião era própria para se apoderar de algumas emoções esquecidas, sentir os cheiros e barulhos de sua infância...
O casal Marie e Pierre Söut e os quatro filhos, Eugênio, Margarida, Madalena e Luíza, deixaram Lyon na França no final do século XIX em busca dos horizontes do mundo novo. Foram para a Argentina e posteriormente chegaram ao Brasil, desembarcando no Porto de Santos. A família se estabeleceu em São Paulo... A continuidade se fragmenta. As reticências terminam a história dos ascendentes do meu bisavô Eugênio. Os tataravós e tias-avós tornam-se apenas nomes nas recordações de tia Júlia.
“Luíza morreu logo que chegou ao Brasil. Madalena teve dez filhos...”
Não se conhece o que motivou a emigração da família Söut. Talvez reste algum passo nos conhecidos portos, talvez apenas a certeza de uma nova vida...
Eugênio foi sozinho ao Rio de Janeiro para estudar num seminário. Dedicou alguns anos ao aprendizado de teologia. Certamente, seria um bom padre, mas... Por sua personalidade obsessiva, discutiu com o pároco por causa da diferença de 5 centímetros na metragem de um terreno que a Igreja iria adquirir. O pároco não via problema na divergência, mas o seminarista considerou que representava uma lesão ao direito de propriedade.
Os centímetros se transformaram em uma distância incomensurável. Eugênio largou a vocação religiosa e não deixou registros de fé alguma como herança.
Tornou-se enfermeiro no hospital de São Sebastião no Rio e se apaixonou pela brasileira Emília, uma mulher órfã que trabalhava como costureira no hospital para manter os quatro irmãos pequenos.
Não havia muito espaço para romance entre o casal de trabalhadores, o dia-a-dia consumia a possibilidade de fantasias românticas na necessária construção de um projeto afetivo/amoroso. O casamento foi realizado sob a condição de que deveriam cuidar dos irmãos dela...
Na constância dos doze anos de matrimônio, Eugênio honrou sua promessa e ainda tiveram oito filhos, sendo que quatro morreram ainda crianças...
Envolvido com o sonho do próprio negócio, Eugênio estudou veterinária, deixou o cargo de enfermeiro chefe no hospital e montou um estábulo no subúrbio da cidade maravilhosa. Um dia, quando retornava com o gado, atravessou a linha do trem desatento e, devido a sua precoce surdez, não ouviu o apito do maquinista...
Morreu três meses após o acidente em 08/01/1913, aos 37 anos.
A bisavó Emília, resignada com sua sina, trabalhou para sustentar os quatro filhos pequenos. Era uma mulher de personalidade forte e, em sua caixa de costuras, alfinetou os bordados de saudades com as agulhas com que teceu o futuro dos filhos. Cerziu no silêncio a solidão da viuvez precoce e vestiu de alegria as lembranças dos descendentes. Era uma exímia costureira de colhas de retalhos...
Meu avô Emiliano, que não tinha 3 anos quando o pai falecera, aprendeu a admirar o pai na fotografia emoldurada na sala, costurada com as sombras de um nome e com o traçado da fatalidade. Herdou a obsessão idealista paterna... Sempre esteve presente nas lutas pelos direitos trabalhistas e políticos.
Infelizmente nunca consegui me aproximar de meu avô. Sempre estivemos separados pelo trilho de seu legado, atropelados pela sua surdez...
Com tantos retalhos coloridos em minha fantasia, reescrevo o nome em sua grafia original e percebo a identidade na pronúncia, conservada apesar da nacionalização do nome...
Söut... A trema desenha o estranhamento dos idiomas que não dominamos, os significados duais de nossa existência... Um céu de vôos com itinerários imprecisos, um oceano retalhado em ondas e correntes...