Raimundinho e o Paredão

LCdeAbreu - Repórter em Roraima, extremo norte do país.

Paredão - Região do município de Alto Alegre, a 100 quilômetros de Boa Vista, capital do estado de Roraima.

Raimundinho e o Paredão

O pior ... é que a sugestão foi minha!

Mostrar as dificuldades, no período de inverno (chuva por aqui), de quem mora nas vicinais mais afastadas da capital. E principalmente acompanhar a retirada da produção agrícola dos lotes até a Feira do Produtor em Boa Vista.

Idéia bacana! Novidade nem tanto! Várias reportagens já tinham abordado o assunto. O nosso diferencial era acompanhar todo processo. O caminhão percorrendo as vicinais, carregando a produção, a dificuldade dos agricultores, o contexto era promissor.

Idéia dada, proposta aceita! A produção fez os contatos!

A produtora passou o "bizu", a dica, o nosso destino, o nosso contato.

- Vocês vão para a região do Paredão no Alto Alegre. O contato lá é o Senhor "Raimundinho da Lata"!

- Raimundinho do que?

- Raimundinho da Lata! – reforçou a produtora.

- E ele não tem outro nome? É esse mesmo?

- Foi o que me disseram. Ele é conhecido por lá. É só perguntar pelo Raimundinho da Lata que todo mundo sabe quem é!

- Então tá!

Partimos eu, o cinegrafista Wagner Pessoa e o motorista Moisés Sanches, todos embarcados numa D-20, velha guerreira, da TV.

Quando começou a estrada de chão percebemos que não seria fácil. Era só lama!

E quando fica difícil é que fica bom! Pelo menos é assim no jornalismo.

Estrada péssima, o carro sambando de um lado para o outro e o repórter pede:

- Pára aqui! Vamos gravar uma passagem!

O cinegrafista foi para um ponto mais alto registrar a cena. A idéia era acompanhar o carro passando pela lama e depois mostrar o repórter comentando sobre as condições da estrada. O cenário ideal!

Calça arregaçada até o joelho, pé na lama e começamos. Só esquecemos um detalhe! Assim que o carro passou por mim, a lama voou nas minhas costas e no microfone. Foi hilário para não dizer trágico.

O pior ... é que a sugestão foi minha!

Seguimos viagem. Lá pelas tantas chegamos a Vila do Paredão. Lugar bem simples, coisa de só uma rua, até porque as outras vias, não poderiam nem ser chamadas de ruas. Paramos o primeiro morador que passava e perguntamos:

- O senhor conhece o Raimundinho da Lata?

O homem deu uma risada sarcástica e disse:

- Conheço! Tá vendo aquele bar ali? Vocês vão lá e perguntem por ele. O Raimundinho fica lá!

O nosso informante continuou meio que rindo e saiu. Ficamos desconfiados com aquela situação, imaginando o que poderia estar por trás daquela risadinha, mas fomos ao bar. Antes de chegarmos a confusão estava formada. Um homem saiu correndo de dentro do bar seguido por um senhor de bigode segurando um machado!

Isso mesmo !? Um machado! A correria durou uns 50 metros até que o moço do bigode desistiu. Outras pessoas que acompanhavam a cena riam e tiravam graça da situação. De todo o alvoroço conseguimos distinguir o irritado do machado dizer:

- Eu quero vê quem vai ser o próximo "cabra" safado que vai me chamar de Raimundinho da Lata! Eu já disse que detesto que me chamem assim! Dá vontade de capar um homem desse!

Aparentemente o nosso contato superou um problema de bebida, que seria a causa do apelido. Por isso só a menção do passado ("Lata", das latinhas de cerveja) era motivo de briga.

Engolimos a seco! O nosso contato, o Raimundinho da Lata, era bravo! E nem queria ouvir o nome pelo qual iríamos chamá-lo. Iríamos!

- O SENHOR RAIMUNDO ESTÁ ?

Foi assim de mansinho que conseguimos estabelecer o primeiro contato. Bem recebidos depois de evitar a gafe descolamos até um jantar por conta do "Raimundo"e um local para dormir. A área do lado de fora do comércio, uma espécie de varanda, foi o nosso abrigo. Redes esticadas na noite do Paredão. Energia elétrica por lá, só até um determinado horário, fora isso era a luz da lua mesmo. Tudo estava tranqüilo até que os primeiros cães apareceram. O nosso abrigo era também o recanto favorito dos cachorros da vila. Um arranca rabo ali outro acolá (embaixo das nossas redes), até que os cães acalmaram. Quando tudo parecia "quase" normal, surgem os porcos. Uns cinco porcos decidiram que a varanda do bar também pertencia a eles e começaram a se agitar sob as redes.

Porcos e cachorros na disputa! E pior ficou quando lá pelas quatro, cinco da manhã um galo e suas galinhas chegaram para aumentar ainda mais a zorra. Uma noite daquelas com direito a “cocoricó” ao amanhecer!

Junto com o canto do galo chegou o caminhão da feira. Começava a nossa segunda etapa da reportagem. Acompanhar a retirada da produção agrícola.

Por vicinais empoeiradas começamos a filmar. Sacolas, caixas, tudo na entrada das propriedades a espera do transporte. Os produtores levavam muita coisa, de hortaliças a bicho vivo, botijas de gás, garrafões com água, crianças de colo, todos como carga na boléia do caminhão. Ah... estava esquecendo! Eu e o cinegrafista também. O motorista (o Moisés) acompanhava no carro da emissora.

Ali foi possível ver o quanto é sofrida essa vida de agricultor, não é só produzir, é conseguir retirar a produção. E olha ... lá eles ainda tinham o caminhão! E em outras regiões? Que nem isso aparece!

Quando achávamos que a capacidade de carregar gente, bicho e coisas tinha acabado, o motorista virou e disse:

- Agora é que vamos começar a carregar !

Dito e feito! De camada em camada os transportados foram subindo, subindo, subindo, até que como num entulho estávamos na altura da cabine. Nesse momento decidi gravar a minha “aparição” (uma passagem) para registrar aquele momento. A iluminação não estava boa, decidimos fazer assim mesmo. Eu achei ótimo! Porque era isso que queríamos mostrar, as dificuldades, os desafios, a força de vontade de quem vive da terra.

A jornada que começou ao amanhecer terminou por volta das sete da noite no desembarque na Feira do Produtor.

Preparamos o texto, editamos o material. A reportagem foi exibida no Jornal Regional do Amazonas, com diversos cortes e sem a passagem da boléia do caminhão (alguém achou que estava muito escuro), em resumo, não ficou nem a sombra do que eu imaginava e desejava que ficasse. O editor, por causa do tempo, cortou trechos que considerávamos importantes. Editar é isso, a “arte de saber cortar”!

Num primeiro momento fiquei decepcionado, mas depois percebi que mais do que o meu desejo de ver a matéria no ar, bem acabada, editada bonitinha, nós tínhamos aprendido uma lição. Tínhamos vivenciado uma experiência além da reportagem, conviver com os produtores, mesmo que por um dia, nos deu uma pauta de vida e isso, nenhuma edição poderia cortar.

Ah ... o MELHOR ... é que a sugestão foi minha!

LCdeAbreu
Enviado por LCdeAbreu em 10/06/2010
Código do texto: T2312193
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