Dia de Corno - Manhã
Durante uma conversa bacana acerca dos cânones literários e o puxa-saquismo de escritores pré-históricos com uma pessoa, e uma conversa bacana sobre o celibato auto-imposto e o vazio do pós-sexo sem amor com outra, a internet cai, interrompendo bruscamente os inspiradores diálogos via MSN. Duas horas da manhã. Há horas que já deveria estar dormindo, mas quando o papo está bacana eu não dou muita importância pro dia desgraçado de sono inclemente que começa assim que o despertador toca. Na minha diária auto-enganação figura sempre o "vou pra academia amanhã de manhã". Indo ou não, acordo uma hora antes do que o normal meio que por obrigação. Tenho que acordar meu irmão do meio pra ir pra escola. E todo dia, dez pras seis da manhã, é a mesma ladainha: meu sonho é interrompido pelo toque Minuet do celular; eu resmungo, viro pro lado e coloco uma soneca de cinco minutos; cinco minutos passados, saio da cama, ligo o despertador do celular e começo a briga pra acordar aquele sem vergonha que dorme na cama de cima.
- Anderson... Anderson... Anderson... - Com o despertador tocando e a luz do celular na cara dele. Admito que é uma forma desagradável de acordar alguém - E imagino como deve ser o primeiro pensamento assassino de quem é acordado assim - mas o moleque dorme pesado demais e essa técnica utilizada se mostrou eficiente nos últimos meses.
- Tsc, que foi mano?
- Escola... Vai, levanta...
- TSC, não quero ir hoje não mano... - E cobre o rosto com o cobertor.
Vou lá e acendo a luz e volto.
- Vai meu, levanta, quero voltar a dormir - Finge que não está me ouvindo e simula uma respiração mais profunda, quase roncando.
O frio, o sono, a mesma ladainha todo santo dia. Puxo o cobertor inteiro de uma vez e começa a briga:
- VAI, LEVANTA LOGO QUE EU QUERO VOLTAR A DORMIR. VAI VAI VAI VAI!
- AAAAH, não quero ir pra escola, vai se ferrar - Coloca o travesseiro por cima da cabeça.
Um, dois, três...
- Vai Anderson... Você sabe que tem que ir meu, são seis horas da manhã, pára de me irritar, me deixa dormir, levanta e vai pra escola logo...
- Não quero...
- VAI LOGO FILHO DE UMA PUTA!
Meu irmão mais novo, Gabriel, sempre acorda nessa hora e me apóia:
- Vai logo Anderson.
Às vezes apóia o outro:
- Ele tá com dor de ouvido, Rafa...
Sacanagem ir pra escola no frio, àquela hora, fato. Mas que se danasse ele, que tirava notas boas e se prejudicava por excesso de faltas; se continuasse nesse ritmo logo estaria igual ao irmão mais velho, pegando ônibus pra ir trabalhar sem saber que rumo tomar na vida. Eu, o irmão mais velho, que fazia a mesma coisa na mesma idade e agora tinha de dar diários sermões matinais para aquele adolescente rebelde que dormia com camiseta do Pink Floyd. Sim, minha compaixão durava poucos minutos e eu tinha que lutar para não ser condescendente aos seus muxoxos e não deixar que ele virasse um repetente assim como eu fui. Ele desce do beliche resmungando, acende as luzes da casa toda e vai pro chuveiro. "Que dó", foi meu último pensamento antes de resvalar pro sonho onde eu ficava brincando com o meu finado gato preto que se chamava Chico. Brincávamos embaixo de uma escada. Acordei uma hora depois com o despertador tocando. Sonhar que estava embaixo de uma escada brincando com um gato preto que já estava morto. Três sonecas de cinco minutos depois eu me levanto e começo a tiritar de frio. O espertinho tomou o banho e voltou pra beliche. Dormia pesado, de banho tomado.
Maçã tem alguma utilidade? Digo, além de simbolizar o pecado e aquela cobiçada marca de computadores? Não sei, mas de café da manhã comi quatro maçãs geladinhas, gostosas. Senti aquela inspiração vigorosa do atleta que dois anos atrás eu era; acordava cedo, mesmo no frio, me alongava, corria, pulava corda, fazia exercícios utilizando o peso do corpo - vamos deixar de lado a parte que após tudo isso eu ia com o João pra padaria comer coxinha e tomar Coca-Cola. Enfim, com a barriga parcialmente cheia de maçãs fui dar uma olhadinha na Internet e me desculpar pela saída abrupta da madrugada, me preparando psicologicamente pra enfrentar o chuveiro. Eu lá, sem frescura nenhuma, girando o registro de grau em grau. Em qual vertente da Matemática se enquadra esse lance de medida de graus? Tomar banho em casa no frio é uma verdadeira aula mista de Física com Matemática: cada alterada - por mínima que seja - dos graus do registro são equivalentes no aumento ou redução dos graus da temperatura da água. Eu coçando a cabeça olhando pro espelho formulando um problema:
1) A temperatura do corpo do proletário é de 36°c e a temperatura ambiente é de 15°c. A temperatura da água para garantir um banho decente tem que girar em torno dos 40°c. Lembrando que: se é feito um giro e meio no registro (540°) a temperatura da água fica em torno dos 50°c, porém a pressão dela é nula e o chuveiro começa a faiscar, praguejando pelo excesso de calor e escassez do fluxo pluviométrico; Se mais meio giro é dado no registro, a temperatura cai para 35°c e o fluxo pluviométrico aumenta em 200%.
Responda:
a) Qual é a quantidade de graus necessária para manter a temperatura da água em torno dos 40°c?
b) Se a temperatura ambiente ficasse nos 20°c, quantas voltas seriam necessárias no registro para que a temperatura da água ficasse em torno dos 40°c?
c) Se o infeliz levanta com 39°c de febre e o termômetro indica temperatura ambiente oscilante entre 38°c e 18°c - Sinal de delírio febril - qual deve ser a atitude a ser tomada? Aliás, o que deve ser tomado: um banho ou um comprimido bem gostosinho, tipo Novalgina?
Abri o chuveiro e foi aquela briga. A água quente era maneira, mas o pouco fluxo dela dava espaço pro vento traiçoeiro entrar pelo vão da porta e estragar meu sossego. Isso quando um cotovelo intrometido não alterava os graus do registro e a água vinha mais forte, porém, quase fria. Após fazer os malabarismos de prender respiração pra parar de tremer, esfregar duas ou três partes do corpo ao mesmo tempo e xingar muito pra aliviar a irritação, terminei o banho. Saí do banheiro tremendo de frio e o relógio da sala todo alegre me falando que eu fiquei 25 minutos no banheiro. Aquele pesadelo onde os minutos se transformam em segundos. Sempre pensando em números, calculei que corria o risco de chegar atrasado no trampo. Pra variar. Me troquei o mais rápido que pude - e foi realmente rápido - e saí de casa em disparada em direção ao ponto de ônibus.
Nota: feliz será o dia que eu não precisar mais fazer aquela mesma rota tooooooooodo santo dia. Mesmas pessoas vindo do trabalho, da padaria, da academia. Mesmas pessoas indo pro trabalho, pra padaria, pra academia, pra escola. Mesmas faces. Mesma vida sem sentido...
Um ônibus me basta. Uma fila de ônibus é feita na avenida. O tal único-ônibus-que-me-basta passa na outra faixa e vai embora. Vazio, veloz. Veado. Peguei um outro que vai pro Metrô Vila Matilde por um caminho diferente. Beleza, chegando lá, tudo resolvido: no ponto em frente à estação passam duas linhas que servem pra mim, além de eu ter à minha disposição toda a propinquidade humana e a lerdeza sob trilhos do Metrô. Claro, além do desconto desnecessário de outra passagem. Deprimente. No ponto, fiquei me perguntando qual seria a melhor opção. 8:38am. Meu horário de entrada é às nove. No ponto, menção nenhuma de aparecer algum ônibus e o Metrô se arrastando do outro lado da rua. Parou na plataforma e ficou três minutos. Totalmente abarrotado, continuaria seu trajeto à dois por hora com aquele mormaço de gás carbônico e aquele desespero no entra-e-sai das plataformas. O ônibus era o mais indicado. Mais rápido, mais vazio, mais barato. Ele chegou. Aquele maior, da articulação no meio. Com gente colada na porta de tão cheio. Pára no ponto e uma muvuca é feita. Vai entrando gente, entrando, entrando - Já li isso em algum lugar - e o relógio do celular falando que faltavam quinze minutos pra dar meu horário de entrada. Na minha vez de entrar no ônibus, o motorista começa a bater em retirada. Apesar dos xingamentos de protesto dos outros quase-passageiros, ele não deu a mínima e seguiu seu caminho me deixando inerte e cheio de ódio no coração, ali, no ponto da Vila Matilde. Algo me chamou atenção do outro lado da rua, um pouco acima daquele muro acinzentado: os trens iam chegando cada vez mais vazios e cada vez mais, menos demoravam na plataforma. Cogitei a possibilidade de ir de Metrô. Complicado. Dez pras nove. Esperar todo esse tempo pra no final das contas, ir de Metrô. Beleza, vou de Metrô. Quando me decido, outro ônibus chega com gente caindo pelas janelas. Ele pára. Eu, já desprovido da minha habitual educação, me enfiei em cada espaço disponível na muvuca que fora feita e fui um dos primeiros a entrar naquela merda de ônibus. Dez pras nove. Doze minutos parado no ponto. Doze minutos de praguejações, imprecações. Doze minutos de inferno pessoal. Dentro do ônibus fiquei me perguntando a razão de ir trabalhar.
Procurando uma razão pela qual eu tinha que trabalhar. Não encontrei nenhuma. Mas mesmo assim, tinha ciência de que TINHA DE trabalhar. Tinha de continuar me vendendo por tão pouco. Mas era pouco, mesmo? Deixarei a pergunta vagando no ar; um dia a resposta volta em seu lugar, sussurrando doces obscenidades no meu ouvido. O clima dentro do ônibus era de total amizade. Uma tiazinha se ofereceu pra segurar minha mochila. De onde eu estava, conseguia ver uma moça que trabalha na mesma empresa. Faz faculdade no mesmo lugar. E em uma das poucas vezes que me dignei a ir numa "balada", ela estava lá também. Com um shortinho provocante, de salto, com a barriguinha de fora. Piriguete, lembro que me comia com o olhar na baladinha tosca. Comia todo mundo com o olhar. Passava na pista roçando, provocando. Eu lá, na pista, curtindo a vibe e de repente meu órgão é segurado, apertado, apalpado. Foi coisa rápida, aquele agradinho inesperado. E de quem era aquela audaciosa mão? Dela, que me soprou um beijo, sumindo na pista de dança. E o ônibus, como sempre, enchendo. O corredor apertado e eu com a criança encostada no braço do banco. E começa o aperta-aperta-empurra-empurra e mulher diz que sofre em ônibus; diz que sofre porque nunca sentiu os bagos sendo esmagados, indo de encontro, utilizando a Terceira Lei de Newton com um banco duro de ônibus. Bem que a mocinha poderia me fazer uma massagenzinha agora, pensei. Descemos e segui apressado, subindo a escada rolante correndo, descendo a ponte à passos largos e olhando o restaurante que acaba com boa parte do meu salário. Maçãs não têm utilidade nenhuma; eu já estava morrendo de fome. O farol abre na minha vez de atravessar a rua. A capacidade de pessoas do elevador é completada com a pessoa que estava na minha frente. Tudo bem. A mina mais gostosa do segundo andar entra comigo no elevador e faz um comentário engraçadinho sobre a maldita porta assassina do elevador e eu dou uma risadinha sem graça e meu nariz dá uma escorridinha básica de coriza com ela me olhando nos olhos. Entro na Central. Meu corredor apinhado de mulheres conversadeiras sem ter muito o que fazer por conta do horário. Mais uns bons segundos perdidos desviando de cadeiras e cadeiras e cadeiras. Uma voz me fala: BOM DIA NÉ RAFAEL?
Deveria eu, responder? O dia estava bom?
Bati o ponto nove e doze. Aqueles doze minutos que fiquei parado esperando um ônibus que não chegava, observando um comboio de Metrôs que flutuava alegremente sob os trilhos.
Saudei algumas pessoas e abri as três caixas de correio que dizem que sou o responsável. O único, até às onze. Das nove as onze, uma enxurrada de e-mails do País inteiro chegava pra eu responder. Respondi todos, deixei os SEIS Nextel que eu também sou responsável com uma amiga e fui lá gastar meu vale-coxinha que eles insistem em chamar de benefício. Encontro com uma garota do meu setor na rua. Trocamos um oi mais algumas palavras. Dois pães na chapa e um suco de açaí. A manteiga acaba bem na minha vez. A mulher que fez o suco esbarrou no açucareiro. O pão diminuiu. O preço continua o mesmo. Um gay me paquera. Uma mulher maravilhosa finge que não existo. Cobram quatro reais a mais. Dou chilique e corrigem o valor. Elevador com sua porta irritante. Central. Desviar de cadeiras e cadeiras e cadeiras. Mulheres não muito ocupadas falando de coisas do lar. Do cotidiano no ônibus. Falando que pegou um ônibus que "gente, a velhinha se cuidava bem mais do que muita menina nova por aí" e eu ergo a minha sobrancelha avaliando mentalmente tal frase instalada entre as aspas sendo proferida pela pessoa mais desprovida de cuidado com a própria beleza que eu já tinha visto na vida. Para evitar que o ramerrão das donas-de-casa penetrasse meu cerébro, coloquei o fone com um volume que cobria os decibéis dos assuntos chatos acerca de chapinha, esmalte, ator bonitão e etc e fiquei lá, arrancando uns nacos do meu pão chapado e dando umas sugadas no meu suco de açaí melado. E então, a garota que encontrei lá embaixo surge na mesa da frente me chamando de canalha. Até aí, normal, mas eu já tava prevendo o que ia acontecer:
- Por que canalha?
- Porque tu veio aqui no meu corredor e nem me deu oi.
Tentei lembrar que hora tinha ido lá. De qualquer forma, já tinha dado oi na rua.
- Fui!? Que horas?
- Quando você veio pegar os rádios.
- Ah - E voltei a atenção pro documento que eu estava analisando. Um gerente de Banco me falando que era um Auto de Entrega, quando era apenas uma simples inspeção veícular. O filho da puta querendo me enganar. E eu lá, concentrado e ela tirando a minha atenção. O meu "Ah" foi meio que uma tentativa de, por hora, encerrar o assunto e voltar o foco no trabalho. Mas não, tinha de acontecer o que eu havia previsto.
- Se fosse a Fulana você faria questão de vir aqui do outro lado cumprimentar né?
- O quê? - Não, eu não estava ouvindo aquilo (apesar de saber desde o início que iria ouvir aquilo).
- É, se fosse a fulana você viria aqui dar abraço, beijinho, pegar no cabelo. Só a fulana te tira dai...
A fulana é uma das pessoas que tem a mais alta patente no que se refere à minha estima. O que desperta a dor de cotovelo de algumas outras mulheres que não atingiram tal grau de amizade. Não sei porque essas disputas de ego. Ninguém é igual a ninguém, não sei o porquê da comparação, da disputa. Não é campeonato. E no final, como eu sempre falo: abrir as perninhas pra mim ninguém quer. Portanto, fiz a minha mais sincera carranca de VAI TOMAR NO MEIO DO SEU CU e segurei tais palavras na minha língua indignada. Fulana diz que quando eu faço tal cara, nada mais é preciso ser dito. Mas não foi o suficiente pra menina, ela insistiu. Tava querendo:
- Vai falar que é mentira!?
- Você faz isso de propósito, né?
- Expor sua dor de cotovelo ciente de que essa é uma coisa que eu ODEIO e a minha vontade de mandar a pessoar TOMAR NO OLHO DO CU sempre vem logo após ouvir a dor de corno.
- Você vai me mandar tomar no cu então?
Não me dignei a responder e voltei a atenção pros meus nacos de pão e pro meu suco de açúcar com açaí. Digo, o contrário. E não tinha nem três horas que eu estava acordado. Aquele seria um dia longo...
Deveria ter respondido ao "bom dia" que me desejaram? E era apenas a manhã me açoitando, logo viriam a tarde e a noite. Responderia eu, aos vindouros "boa tarde" e "boa noite"?
Abri um bloco de notas pensando na conversa sobre celibato que foi interrompida pela queda da internet nas primeiras horas do dia e comecei a escrever sobre o assunto.