A menina
A menina caminhava descalça com um alegria que eu jamais poderia conceber. Seu sorriso parecia transmutar em delicadeza o gosto frio do chão sujo nos pés imaculados. Gosto que só pés calejados sabem saborear. Eu olhava e imaginava quais devaneios poderiam levar a menina à loucura, se em seu passeio ela pudesse em algum momento questionar o porque do tocar o chão, o porque de simplesmente prostrar-se e se entregar em desânimo. Ela não poderia imaginar que aquele jovem, (bem, talvez já não tão jovem) que a observava poderia simplesmente, num ímpeto suicida, atirar-se a seu pescoço, apertá-lo com tal violência, que o sangue simplesmente sumiria de sua faces, que aquele homem poderia sugar-lhe a vida tão somente por inveja, aquele homem poderia saborear a palidez da morte como quem saboreia Machado de Assis em um meio acadêmico repleto de mal-resolvidos. Que aquele homem choraria depois a morte infantil, e prontamente a enterraria, ele próprio cavando uma sepultura, fazendo um exercício físico até então tão adiado, e que após tal cena dramática, iria tranqüilamente tomar um capuccino, por mais infernal que pudesse ser o calor de fevereiro em São Paulo. Ela não conceberia então que aquele homem que lhe sorri, sorri de satisfação, não por ela, mas pela vida, inevitável sina que faz as crianças crescerem e que as torna tão desprezíveis como qualquer outro ser que ousa classificar a si mesmo como superior, como humano, como apreciador de artes. Que talvez esta vida a tornasse uma senhora respeitável, que nas horas vagas adorasse filmar jovens adolescentes dopados,e vendesse essas imagens pela Internet, após fazer uma bela palestra sobre a sofreguidão humana. Então ela realmente não merecia morrer, só se pode contemplar a felicidade quando se é criança. A consciência e a felicidade não podem caminhar juntas, só os que não sabem é que podem ser felizes. Ela iria crescer, nada pode ser pior do que isso.