A REDENTORA BELEZA DA POESIA
De forma velada, desconfiada e matuta, Adélia Prado grita aos quatro ventos uma frase messiânica: “A poesia me salvará!”. Ela teme os doutores, os caçadores de bruxas, os moralistas de plantão, os dogmáticos encalacrados, as gentes de notas de rodapé. Não sem motivo, ela teme a perseguição injusta de quem proclama a beleza como salvação do corpo, da alma e de tudo que venha existir. Deus se fez carne. A Palavra se fez tenda em nosso frágil acampamento de pele, osso e desejo. O mistério salvífico habitou nas entranhas da Virgem. Não seria o próprio Deus um poeta? Não seria Cristo uma poesia libertadora cantada de geração em geração? Ah, mas a poesia é mal compreendida. Alguns fiam versos medidos com réguas, compassos e redondilhas. Mas a Palavra não se esgota em versos métricos. Ela perverte o óbvio, fala de mundos melhores, de sofrimentos purificadores, de paz reconciliadora. Essa poesia, feita Palavra, nascida da pena divina, salvará e dará sentido à vida, ao mundo, ao sofrimento, ao prazer e à alegria.
Fala também calando, fingindo, desviando dos olhares... Creio firmemente que a beleza da poesia nos salvará. Não porque ela seja redentora por si própria, mas porque ela é caminho, é meio e é ponte. Em sua magia onírica, traz à tona os segredos do coração. Somos mistérios ambulantes. Mistérios desvairados, loucos pela manifestação. Somos seres epifânicos, desejosos de externar nossas entranhas, tal qual fez Deus em sua Encarnação.
Eis que a poesia nos trai. Fala quem somos, fala de nossos desejos. Ela é noturna coruja. Vagueia pela noite escura. Tateia nossos mistérios e os expõe. Por isso, teme-se a poesia. Somente ela nos dá olhos para perceber que o rei está nu. Somente ela nos desnuda, nos inunda e nos arrebata. Por meio de metáforas, Deus fala em poesias. Fala de heterotopias, de mundos que se encontram além das aparências dos espelhos. Ela nos seduz por meio da mágica beleza dos versos. Carrega-nos para o além, para dentro de nós mesmos. Mostra-nos que somos carne feita de versos e de canções.
É no seio da poesia que o Sagrado e o Profano fazem as pazes. Que as diferenças anseiam pela complementaridade. Aqui não se busca a exatidão lógica, a retidão do pensamento, a ortodoxia bem acertada. A poesia é o lugar de extensão do lúdico, do Amor e do desatino. Talvez por isso o poeta seja execrado da cidade. Ele fala de ciências invisíveis, de movimentos de pálpebras que escondem o mundo real. Ele questiona o óbvio e o absoluto. Ele propõe novos lugares. Tal qual Deus, ele recria mundos e perverte realidades. A poeta-profetisa Adélia está certa: a poesia nos salvará. Salvar-nos-á das distâncias, dos medos, do peso excessivo da coerência, dos rabugentos, dos mal-amados, dos frustrados, dos imperalistas e de todos os amargos. Ela nos dará a leveza dos sonhos e do amor, ela nos dará motivos para chorar e rir, ela nos dará o contato com um Deus que brinca com palavras... e pela Palavra faz novos céus e novas terras.
“Eis que um canto se ouve ao longe
Como trombetas vindas do trono do Grande Rei
Como miríades de Querubins contemplando o Termo dos Desejos
Cantam canções imagináveis
Proclamam poesias que mudam a face da Terra
Proclamam versos feitos de palavras de carne
Proclamam o dia da Libertação
Quando tudo será tão belo quanto a face de Deus” 1
1 CLARENCE, E. MACARTNEY (org). Grandes sermões do mundo. Trad. Degmar Ribas Júnior. Rio de Janeiro: Casa Publicadora da Assembléia de Deus. Ed. Brasileira. 2003