Meu carrinho de rolimã
Um carrinho de rolimã dava, quando eu era criança, a mesma emoção de sair com seu primeiro carro “zero” da concessionária. Meninas não entendem disso. Ou ao menos não entendiam. Lá no meu bairro as meninas só brincavam de casinha mesmo. Coisa boba.
Para se ter um carrinho de rolimã é preciso, antes, ter uma pista. Carrinhos de rolimã correm ladeira abaixo no asfalto. Portanto se você não tem ladeiras (seguras) e nem asfalto, desista. Você não vai ter um carrinho de rolimã.
Rolimãs são rolamentos de automóveis que, para automóveis, já não têm serventia, mas para nossos carrinhos funcionavam perfeitamente. Rolimã usada é uma sucata. Como naquela época não havia essa avidez louca por reciclar tudo, as rolimãs velhas eram jogadas numa caixa e por lá ficavam. Então jamais um dono de oficina mecânica seria capaz de negar rolimãs usadas para as crianças.
São duas rolimãs iguais para o eixo traseiro e uma maior para o eixo dianteiro. Fazer um carrinho de rolimã consiste em ter uma tábua de madeira de uns 90 cm por 30 cm. A gente usava as tábuas velhas de construção ou, como na época era barato, ia na marcenaria e comprava uma já na medida. Dependia da mesada da semana que, naquela época variava de acordo com o humor da minha mãe.
Aí se precisava de um sarrafo bom, onde depois, com paciência e faca amolada ia se arredondando as pontas até se encaixarem bem justas nos buracos da rolimã. Dava um trabalho do cão. Mas a gente fazia com tanto entusiasmo que nem sentia. Depois era só pregar o eixo traseiro com as rolimãs bem apertadas, com pregos de qualidade ou até mesmo parafusos, e a parte de trás estava pronta.
Escrevendo assim parece fácil. Lendo mais fácil ainda. Mas era uma coisa penosa. Os pais não se envolviam nessas coisas, mesmo porque eles permitiam mas não estimulavam. Era mesmo perigoso. Hoje é quase um suicídio. Mas naquela época criança brincava na rua. As crianças foram encarceradas muitos anos depois. Mas isso é outra história.
Continuemos. Um carrinho de rolimã se dirige com os pés. Então, para que o sistema funcione, há que se decidir se vai ser uma roda grande no meio ou duas nas pontas, como no eixo traseiro. Essas não tinham graça, escorregavam demais, mas eram mais fáceis de fazer. Já a que tinha uma roda no centro, exigia mais equilíbrio, tinha mais estabilidade por ser maior (mas também era mais difícil de conseguir), e precisava de uma certa engenharia para construir.
A gente fazia um furo no meio da tábua, na frente, onde ia um parafuso mais grosso que a gente conseguia nas oficinas mecânicas também. Era onde se juntava a tábua ao eixo dianteiro. Mas para fixar uma roda só eram precisos dois suportes e um eixo. O eixo, quando dava sorte, era um pedaço de cabo de vassoura. Coisa simples. Se encaixava a rolimã ali e pronto. Mas, se ficasse folgado, tinha que procurar outras oficinas até achar uma rolimã adequada.
Depois de montado, se juntava tudo com o parafuso e íamos para as ladeiras apostar corrida. A coisa nao era amadora, não. Antes a gente colocava graxa e óleo nas rolimãs para que escorregassem mais e desse mais velocidade. Rolimã era de aço puro, rodando no asfalto, já dá para imaginar o barulho que fazia. Quando era corrida então, parecia “fórmula 1”.
Então um amigo dava um empurrão inicial e lá íamos nós. Como não havia curvas a gente fazia um zig-zag para dar a emoção necessária e quando chegava na esquina do cruzamento “perigoso” a gente pulava e pegava o carrinho com as mãos. Mas se perdia o equilíbrio, o carrinho escorregava, e gente se ralava inteiro, era cheio de emoções. Daí era subir a ladeira com o carrinho nas costas para dar o empurrão na vez do outro.
Hoje os automóveis no Brasil se contam aos milhões e os motoristas doidos também. Na nossa condição de criança, eles nos roubaram a rua onde brincávamos. Não se brinca mais na rua. Então substituiram o carrinho de rolimã pelo skate. Mas não tem comparação.
É a mesma coisa que comparar as pipas (ou papagaios) que fazíamos à mão, comprando papel impermeável, fazendo as varetas com bambus que íamos buscar no mato, etc, com essas coisas de plástico prontas que se vende por 1 real em qualquer praça. As crianças de hoje têm um divertimento só. O final. Colocar a pipa no ar ou andar no skate. Nós, talvez por falta de vídeo-game, tínhamos muitos divertimentos, como construir nossos brinquedos antes de brincarmos.
Me lembro de crianças “covardes”, que contavam com as habilidades do pai e conseguiam fazer carrinhos de rolimã super incrementados. Eram até pintados com tinta óleo e tudo. E a gente ficava admirando como se admira hoje uma Ferrari numa vitrine da importadora. Babando onde o rico vai por a bunda.
A vida é dinâmica e ficar aqui reclamando da extinção dos carrinhos de rolimã não leva a nada. Hoje essas crianças são capazes de fazer com as mãos coisas inimagináveis com um controle remoto de vídeo-game. E quando a gente diz que não dá conta de entender, olham com desdém e nos imaginam uns imbecis. “Aperta aqui que ele pula, aperta esse que ele chuta”, e assim por diante. Só que eles se limitam a comprar ou piratear (baixar da Internet) os jogos, quando a gente fazia o nosso brinquedo.
Se eles não viveram as nossas diversões, não podem saber se éramos mais felizes ou não. Eles vivem a felicidade de hoje e nelas se “amarram”. Se eu convidar uma criança para fazer um carrinho de rolimã é capaz de achar que eu bebi além da conta.
Mas tem um mistério que agora me vem à mente. Embora a gente andasse no meio da rua, no asfalto dedicado aos automóveis, nunca soube de um único caso de uma criança que tenha sido atropelada ou morta com um carrinho de rolimã.
Essa vida é mesmo cheia de mistérios.