Destroços remendados
Destroços remendados
(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.
Um rapaz chega de viagem pela manhã bem cedinho, entra na recepção do hotel, dirige-se ao funcionário e solicita um quarto. Antes de subir para a suíte que lhe fora destinada, a 106, comunica ao funcionário que gentilmente o atendera - “Dentro de uma hora, mais ou menos, uma jovem virá até aqui a minha procura”.
- A que horas esta pessoa deve chegar senhor?
- Por volta das nove horas.
- OK. Eu telefono avisando e a faço subir.
- Obrigado. Como é seu nome?
- Beto senhor, às suas ordens.
Na hora aprazada a tal moça pintou no pedaço. O solícito Beto como havia prometido interfonou, e, para justificar o salário que ganhava acompanhou a até o elevador.
Por volta das seis da tarde, a turma que labutou pela manhã fora substituída pela galera que trabalharia até as seis horas da manhã do dia seguinte.
Coincidentemente, o hóspede da suíte 106 saiu para jantar fora. O funcionário Beto que havia aberto a porta do elevador à beldade fez uma mesura com a cabeça e voltou a repetir o sorriso de antes quando os viu sair para a rua, naquela noite fria e chuvosa.
Entre a saída do casal da suíte 106 para o jantar e a troca de funcionários, incluindo o Beto, o casal jantou tranquilamente e, em seguida, a bela que estava com ele o conduziu até sua casa onde morava com a irmã gêmea, grávida de nove meses. Na verdade, a irmã da gestante marcara com seu cunhado no hotel para convencê-lo a fazer as pazes com a irmã, uma vez que, dentro de um prazo relativamente pequeno, ela daria a luz a uma criança fruto da união dos seus encontros amorosos às escondidas da família. O rapaz ponderou a conversa e resolveu voltar para a companheira, que, realmente em questão de dias traria ao mundo um rebento seu.
A meia noite e meia o ocupante da suíte 106 chegou de volta, desta vez com a outra irmã, ou seja, com a sua mulher, a que estava grávida diga-se, de passagem, com um barrigão de todo tamanho. Os dois pombinhos chegaram na recepção, pediram a chave da suíte 106 e subiram sem maiores complicações, observando um detalhe: o funcionário que pegara a noite, não sabia que a acompanhante do cidadão esperava um bebê. Limitou-se a entregar a chave e desejar uma “boa noite” informalmente cordial.
A confusão começou de fato às nove horas do dia seguinte, quando, após a nova troca de turma os dois desceram para o café. As garotas que serviam no salão olharam espantadas e atônitas para a criatura que acompanhava o hóspede da suíte 106. Os cochichos de repente começaram a pulular de boca em boca.
“... - Você reparou?
- Claro!
- Ontem ela estava sem barriga e hoje, espia só o tamanho...
- Ou esse cara ali tem parentesco com aquele super herói, o The Flex, o homem mais rápido do mundo ou deve estar rolando alguma falcatrua das brabas.
- Também acho.
- Aquela barriga, com certeza, é falsa. Ela não se deu nem ao trabalho de mudar a roupa ou o cabelo.
- Melhor a gente avisar o Beto na recepção...”.
Beto que atendera o cliente da suíte 106 e recebera a beldade que viera em visita a ele, não sabia desse detalhe da gravidez inesperada. No dia anterior, bem recorda, vira uma moça linda, de beleza ímpar, alta e magra, chegar na recepção a procura do cara da suíte 106, todavia, desconhecia a história da barriga que suas colegas do restaurante acabaram de contar. Antes de tomar uma decisão precipitada, resolveu aguardar, até porque a diária venceria ao meio dia. Sua excitação e nervosismo não o fez esperar muito tempo. O ocupante da suíte 106 apareceu na recepção a caminho da rua. Com ele, à tira colo, a princesa do dia anterior, linda, de beleza ímpar, alta e magra...
- Bom dia, seu Beto.
A resposta de sujeito saiu meio que engasgada:
- Bo... Bom... Dia... Se... Senhor!
Seus olhos não acreditaram no que via. Ali, diante dele, a moça que ele acompanhara até o elevador, um dia antes, sem nada, mesmo rosto, mesma roupa, mesmo sapato, com a diferença da barriga que crescera um pouco desproporcionalmente.
- Seu Beto, tem alguma farmácia aqui por perto?
- Des... Des... Cendo... À es... Esquer... Da... Uns... Tre... Tre... Zen... Tos me... Metros...
Boquiaberto e pasmo resolveu ligar para o gerente. O cidadão desceu como um foguete.
- O que houve seu Beto?
- O sujeito da suíte 106 chegou ontem pela manhã. Avisou que às nove horas viria até aqui, a procura dele, uma mulher. A mulher veio...
- E daí? Isso é normal. Por que todo esse alarido?
- É que a mesma mulher, senhor, acabou de passar aqui, de barriga.
- Não entendi seu Beto.
- Senhor, ontem quando ela chegou não tinha nada. E hoje, menos de vinte e quatro horas, está grávida. A barriga está tão volumosa que parece querer estourar.
- Você está trabalhando além do normal. Acho que reconsiderarei seu pedido de férias.
- Não, não estou trabalhando demais. O hotel inteiro pode confirmar. Pergunte, por favor, ao pessoal do restaurante.
O gerente não teve alternativa senão a de tirar a coisa em pratos limpos. Ouviu uma por uma as funcionárias e todas foram unânimes em corroborar a historia do recepcionista. Diante dessas evidencias, chamou a polícia.
Entre a saída do casal da suíte 106 para a farmácia e a chegada da viatura com quatro policiais, a irmã não grávida volta a dar o ar da graça na recepção. Beto, o rosto branco como o de um defunto, cutucou o gerente.
- É essa. Viu como eu tinha razão? Ela saiu de barriga e voltou sem nada. Repara: mesma roupa, mesmo sapato, mesmo cabelo...
- Calma, meu rapaz. Aja de forma a não despertar suspeitas. Sorria sua besta.
O gerente piscou para os policiais. Eles se posicionaram.
- Com certeza – disse o tenente que comandava o grupo – com certeza é tráfico de drogas.
Ao obter a informação de que o ocupante da suíte 106 não se achava nas dependências do prédio, a moça deu meia volta e sumiu no reboliço intermitente da avenida.
Os policiais então resolvem agir. O tenente chama o gerente e o recepcionista para uma saleta colada ao balcão da recepção. Conversa com eles cinco minutos, lapso em que o paço principal da recepção, completamente às moscas, permanece desguarnecido. Sem ser notado, retorna o casal da suíte 106, e sobe para o primeiro andar sem que ninguém os veja adentrar de volta ao prédio.
Pouco antes do meio dia os ocupantes descem com as malas. Pedem o fechamento da conta. Recepcionista, gerente e uma pá de funcionários formam uma pequena roda no saguão principal. O tenente então sai da saleta e dá a voz de prisão.
- Revistem as malas deles.
A grávida é empurrada para um canto.
- Tire a roupa, senhora!
- O que está havendo? Que foi que eu e meu marido fizemos?
- Engraçadinha. Tira logo a roupa ou vamos arrancar à força. Queremos ver o que carrega nessa falsa barriga.
- Estou grávida de nove meses. Será que o senhor não sabe distinguir uma mulher em estado interessante?
- Eu também estou madame! Quer ver o bracinho do neném?
A chegada providencial da irmã não prenha ao recinto põe fim ao tumulto.
- Por que estão prendendo minha irmã e meu cunhado?
O gerente, o recepcionista, os funcionários convocados para o flagrante e os próprios militares mudam de cor. Por instante toda a galera presente se transforma num bando de cegos perdido em meio de um tiroteio.
A jovem não grávida – irmã gêmea da que daria a luz, mesmo cabelo, mesma roupa, mesmo sapato, tira do bolso traseiro da sua calça jeans uma carteira com um distintivo que reluz no ar. Essa exibição acalma os ânimos e deixa a multidão estupefata e completamente embasbacada.
- Tenente, sou a juíza da 5ª vara criminal desta comarca. Aliás, pra seu governo, assumi ontem, meu cargo. O senhor tem dois minutos, nem mais, nem menos, para me explicar essa palhaçada que estou presenciando aqui, ou vamos todos, agora mesmo, parar na delegacia. Estou esperando!...
Creditos:
(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.
(**) Escrito em Curitiba, Paraná em 14 de maio de 2010.
Contatos: aparecidoraimundodesouza@gmail.com