Cotidiano

Com um forte solavanco ele abre a porta da casa. Está bêbado, exalando o forte odor de álcool adocicado característico da popular cachaça brasileira.

Ele põe-se para dentro.

Ao entrar, bate a porta contra a batente com tamanha força que a faz pular da cama num espasmo de terror.

Ela já dormia há algumas horas. A brutalidade com que o cônjuge adentrara na casa arrancara-lhe de um sonho. Sonho não, pesadelo. Agora, o pesadelo mais uma vez era real. Não suportava mais o sofrimento calcado no terrorismo imprevisível do marido possuído pelo tal do encosto – como lhe havia explicado o pastor da Igreja Pentecostal.

Aliás, marido não. Não mais. Haviam separado-se a dois anos. Precisamente o tempo pelo qual ele estivera “amarrado” pelo demônio. Há dois anos a situação era a mesma, mas o sofrimento, esse começara bem antes, desde o casamento.

Porque houvera de ter se casado com esse traste?

A labuta na vida de Maria começara muito cedo. Nunca fora bonita. Sempre tímida, tinha enorme dificuldade em se relacionar socialmente. Por esse ponto de vista parecia-lhe razoável casar com esse homem. Fazer o que? De maneira ou de outra sonhava em ser feliz. E quem não sonha?

Agora lá estava ela. Acordara de um pesadelo onírico para se apreender num pesadelo real. E lá estava ele, revirando as panelas em busca da janta requentada do almoço.

A separação não teve efeito nenhum. Ele tinha a chave. E ai de Maria se ela tivesse a audácia de trocar o segredo da fechadura.

Toda noite, após muitas dozes de cachaça, ele vinha até sua antiga residência saciar as necessidades libidinosas do seu corpo. Era sempre a mesma coisa: comia o resto da janta, fumava um cigarro, entrava no quarto de Maria e a estuprava.

Maria era forte, calejada, e agüentava estoicamente o sofrimento da vida. Ele era fraco, covarde, acostumado desde pequeno à covardia do mais forte. Mas Maria, caso tivesse outra oportunidade, não sonharia novamente. Já sucumbira à desesperança.

E esse era o cotidiano de uma maria qualquer no Brasil.

Gabriel Tosquera
Enviado por Gabriel Tosquera em 07/06/2010
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