Maquinista
Nesta vida podemos ser tudo o que quisermos, mas o mais importante é fazermos a coisa certa, o que está dentro de nós, aquilo que desde a mais tenra idade é capaz de nos emocionar e que de alguma maneira nos prende, nos motiva, e de fato faz parte de nossa existência.
Vejamos alguns exemplos: quantos gostariam de ser outra coisa, mas a família já havia prometido a não sei quem, que um de seus filhos seria padre, médico, professor, aviador, enfim uma infinidade de profissões, e hoje são pessoas frustradas, completamente deslocadas daquilo que gostariam de ser?
Vamos tirar por mim. Desde pequeno eu era apaixonado por trens. Já na escola primária, que foi a única que freqüentei, quando a professora mandava fazer um desenho, o meu era sempre o de um trem. Ai pelos meus 9 anos, ainda na escola, o meu pai me arrumou para ser aprendiz de sapateiro, que na época era uma boa profissão, pois poucos podiam comprar sapatos novos, e o remédio era mandar consertar o que se tinha. Não gostei e sai. No dia seguinte eu estava feito aprendiz de alfaiate. Não gostei e também sai. Foi quando o meu pai me disse: O que você está me saindo? Com dez anos já tem sua própria vontade e não acata as minhas ordens? Você que ser vagabundo?
Então, eu já com quase 11 anos disse ao meu pai: Tudo o que o senhor me arrumou não bate com a minha vontade. Mas pode ter certeza de que eu nunca decepcionarei a família Rossi. Então ele me disse: Quando você vier da escola, amanhã, almoce e vá para o salão do Romeu Mantovanelli. Eu arrumei para você ser aprendiz de barbeiro e veja se você para por lá, que é um bom ofício.
Como eu ainda estava na escola, fui até o citado salão. Lá fiquei até tirar o meu diploma do primário. Um dia, por minha própria conta, resolvi não ir mais ao salão de barbeiro, e fui procurar um emprego onde eu ganhasse alguma coisa. Comecei pela Rua 13 de maio e fui oferecendo os meus préstimos em todas as lojas, hotéis, pensões, até que eu cheguei num bar, na Rua Saldanha Marinho, esquina com a Rua 13 de maio. Lá me apresentei ao dono, um português muito forte, e lhe disse: O Senhor é o proprietário deste bar? Ele me disse: Por quê? Não parece? O que tu queres? Tu sabes fazer o que?
Então eu lhe respondi: Não sei fazer nada. Ele me olhou firme e disse: Tu nada sabes fazeire e vens aqui pedir emprego? Mas vá lá atrás daquela geladeira e pegues aquele avental e vá lá na pia lavar xícaras e copos.
E lá eu fiquei por 3 anos e meio. Não era o que eu, de fato, queria para mim. Mas estava ganhando, e até muito bem para a minha idade. Era um Bar e Restaurante, muito bom, e bem movimentado, onde eu estava fazendo um estágio para um futuro próximo, quando tentaria fazer o que sempre eu havia sonhado: trabalhar com locomotivas dos trens, fazer carreira.
Antes de eu entrar na Cia Mogiana de Estradas de Ferro, eu trabalhei no bar do senhor Coelho (era este o nome do dono do Bar e Restaurante) até o ano de 1949. Depois ainda trabalhei na Fábrica de Cola Campineira, serviço muito pesado, e onde para poder ganhar mais e ajudar ao meu pai com as despesas de casa, com 16 anos fui trabalhar na parte que era dos maiores de 18 anos. E assim ganhava o ordenado de adulto.
Em 1955 eu ingressei na Cia Mogiana de Estradas de Ferro. Estava realizando o meu sonho. A carreira começava assim. No primeiro mês a gente ficava no depósito de locomotivas aprendendo a fazer fogo nas caldeiras das locomotivas, onde 80 por cento eram locomotivas com fornalhas a lenha. Aprendia a azeitar as locomotivas.
No segundo mês já íamos aprender com os foguistas, nas manobras. Aprendíamos a interpretar os sinais dos manobradores e a manter as locomotivas com vapor necessário para que ela conseguisse desenvolver seu trabalho, e tínhamos de ter sempre a atenção voltada para com a água da caldeira e para o aparelho de óleo que lubrificava os dois cilindros. Tudo isto sempre acompanhados por um foguista bem prático.
Depois deste estágio, estávamos aptos a ser ajudantes de foguista na linha corrida. A minha primeira viagem foi com o trem P1, que ia de Campinas a Casa Branca. Trem de passageiros.
Então lá estava eu com o meu ideal em andamento. A locomotiva era a 250, própria para trens de passageiros. Locomotiva vinda da Filadélfia. Ela puxava 270 toneladas e pelo seu formato nós a chamávamos de “Camela”.
As equipes eram sempre efetivas e eu fui trabalhar com o maquinista João Nadark Machado. O foguista era o Sebastião José Pedro e eu era o ajudante, cujas funções na locomotiva eram: 1º retirar os galões de óleo de válvula e movimento, 2º apertar, ou seja, colocar graxa sólida em 8 compressores que lubrificavam a brassagem, verificar se a locomotiva estava abastecida corretamente de lenha e areia, 3º verificar as rodas da locomotiva, se não havia vestígios de poeira de bronze, coisa que só ocorria se as caixas de óleo de ambos os lados não estivessem lubrificando normalmente. Em caso de avaria tínhamos de chamar o artífice daquela área para verificar o que estava ocorrendo, 4º aproveitar os 5 metros de lenha que ficavam ao lado da locomotiva, colocando o que cabia na fornalha, e acomodando as sobras na locomotiva. Assim, a tarefa do ajudante estava quase concluída. Só nos restava passar estopa branca limpa na caldeira, em sua parte externa. Nessa altura, o maquinista e o foguista já haviam chegado e estavam prontos para partir para a estação onde nós engataríamos no trem, onde eu examinaria os freios e as ferragens dos vagões, para uma viagem segura e apta a respeitar os horários já estipulados. E ai começava a minha viagem como ajudante de foguista.
Era muito trabalhosa a função da equipe das locomotivas a vapor.
Porém, por mais que fosse cheia de atribuições eu estava feliz. Sentia-me um ser superior. Eu era mais um no meio daqueles que eu sempre admirei. Braços queimados e camisas e boné furados pelas fagulhas. Eram como se fossem condecorações para mim, ganhas em batalhas. Se no início eu disse que para ser maquinista tem de ter vocação é a pura verdade, tem de esquecer que existe Natal, 1º do ano, Carnaval, e outras festas, e se dedicar a carreira.
Ao longo de 30 anos posso contar nos dedos quantos dias de festas eu passei em casa. Tínhamos de respeitar as escalas. Recordo-me de um Natal em que eu estava de folga, anos 1960, eu já era foguista recém promovido. Estava quase na hora do almoço quando chegou o chamador no portão de casa e gritou: “O Rossi, encha o caldeirão de comida e vá já ao depósito que o Rodrigues avisou que não poderá fazer a escala dele.”
Então, eu muito calmo, avisei a minha esposa que não almoçaria em casa. Tinha de ir cumprir a minha missão. Talvez fosse o 1º Natal que eu passaria com os meus familiares. Fui muito feliz porque sabia que a nossa carreira de locomotivas tinha essas passagens.
Passei por todas as divisões de carreira, ou seja, ajudante de foguista, depois foguista dos trens de passageiros, já nesta época com locomotivas diesel elétricas. E fui passando por todos os estágios da carreira: Maquinista de manobras, maquinista de trens de carga e maquinista de trens de passageiros que, se fosse no exército, corresponderia a general.
Porém, para chegar até este almejado posto foram inúmeras viagens de Campinas a Casa Branca, Ribeirão Preto ou Mairink. Nessa época fazíamos, também, a linha da Sorocabana. Muitas coisas acontecem durante a careira.
Em certa viagem eu ia com uma locomotiva GL, que não era das maiores, com um trem destinado a Sapucaí. Entre Itapira e Barão de Ataliba Nogueira, trecho com muitas curvas e muitas passagens de nível, por volta das 20 horas, eu atento à linha, pressenti que um farol estranho fez claridade na linha. Imediatamente acionei os freios de emergência, o que serviu para amenizar o choque com um Passat que foi apanhado pela traseira e atirado ao lado da linha.
Eu e meu ajudante fomos até o veículo apanhado, para prestar socorro, e lá, um casal ainda estava sentindo os efeitos da colisão. Ajudamos os dois a deixar o carro por uma porta, pois a outra não abria. O casal nada sofreu além do susto. Eles levavam vários convites para o seu casamento, que ocorreria no sábado. Estávamos na quinta feira. A esta altura, o casal muito simpático já estava refeito do acidente e me disse: “devemos nossas vidas ao senhor”.
Ai eu lhes disse: “ vamos agradecer a Deus que me deu a intuição de frear o trem, só a Ele”.
Ainda lhes recomendei que quando fossem atravessar as linhas da ferrovia, prestassem mais atenção à noite: “Parem e apaguem o seu farol, e vejam se não há outro farol clareando a linha, que este deve ser o da locomotiva que vai atravessar a passagem”.
Alertada por moradores das vizinhanças chegou a polícia e um sargento foi até a locomotiva saber do ocorrido e insinuou se eu não havia visto o veículo para poder evitar o acidente. Então, com muita calma eu disse ao policial:
“ O senhor se esqueceu de suas funções aqui, que são as de verificar com os tripulantes do carro danificado se eles não estão feridos, coisa que eu já fiz. Há uns vinte metros da passagem tem uma cruz de Santo André que não é para mim, e sim para os que vão atravessar a linha do trem. A minha obrigação é apenas buzinar há 50 metros da passagem e não usar os freios de emergência como eu fiz. E se o senhor não tiver mais perguntas eu seguirei minha viagem até Sapucaí, pois o meu tempo parado está por conta dos senhores”. Então fomos liberados.
Outra passagem como maquinista, esta até agradável, aconteceu na estação de Campinas. Eu havia engatado a locomotiva num trem R1 com destino a Ribeirão Preto, quando chegou um casal já de uns 60 anos e um menino de uns 6 anos que ficaram olhando muito para a locomotiva, uma GM 02, número 114.
Desci até onde eles se encontravam e perguntei-lhes se o garoto gostava de trens e então eles me disseram: “ O José, nosso neto, até sonha com trens”. Ainda faltavam alguns minutos para a partida e convidei-os a colocarem o menino em cima da locomotiva, que eu mostraria a ele como a locomotiva funcionava. O menino ficou encantado com tudo o que viu. Coloquei-o sentado sobre o meu banco e mostrei-lhe como funcionava o acelerador, os freios, etc. Como se aproximava a hora da partida, eles foram tomar seus lugares no trem, mas não sem antes da avó do menino me abraçar e agradecer o que eu fizera pelo seu neto. Então eu lhes disse: “Eu sou o José de uns 40 anos atrás”.
Realmente eu me vi naquele garoto, pois também tinha sonhado em trabalhar em locomotivas e em um dia ser maquinista. Quando era criança fiz muitas viagens de trem e sempre ia até a máquina para vê-la de perto. E depois de muita luta atingi o meu objetivo.
Muitos que lerem esta crônica poderão pensar no que tinha de tão especial em ser maquinista e eu lhes direi que eu, talvez, não tivesse capacidade para ser outra coisa. Carreira muito pesada para aqueles que não tinham vocação para o serviço de trens. Era preciso amar o que fazia, e todos os meus colegas ajudantes, foguistas, e maquinistas eram pessoas felizes, pois quando subíamos numa locomotiva para fazermos uma viagem, o nosso mundo era aquele: levar o trem até o seu destino. No tempo das locomotivas a vapor, antes de deixarmos o serviço, limpávamos a locomotiva com estopa e querosene, pois era locomotiva efetiva. E depois de algum tempo ela passava a ser a coisa mais importante para nós.
Realmente eu realizei o meu sonho, mas chega um dia em que nós temos de parar. É uma decisão difícil de tomar, mas chega o nosso dia.
Ai eu lembrei das primeiras viagens, em que assisti a um acontecimento em Ribeirão Preto, onde na chegada de um trem, vindo de Uberaba, o maquinista desceu da locomotiva e foi abraçado por várias pessoas.
Então fui ver do que se tratava. Era um maquinista que estava se aposentando e aquela tinha sido a sua ultima viagem. Eu não entendi direito e perguntei-lhe: “O senhor, depois de atingir este alto posto, vai largar tudo?”. Então o maquinista me olhou e vendo que eu, pelo meu boné, era ajudante de foguista me disse, muito paternalmente, “Eu hoje trocaria de lugar com você que está começando.
Pensa que eu não irei sofrer quando esta locomotiva apitar, para chegar ou partir? Vou sofrer muito. Mas chegou a minha vez de parar, depois de 45 anos de serviço, 20 só com esta locomotiva. Quando chegar a sua vez você vai se lembrar de mim.