Dormir...
Morrer...
Mais Nada...


Emprestei o título deste texto do grande gênio Shakespeare, citado pela amiga Zélia Freire, quando lhe contei essa história.
Fiz recentemente um anúncio de um rottweiller vítima de maus-tratos no site da Proanima. Como temos rottweillers e gostamos da raça, perguntei ao marido se gostaria de dar uma boa vida ao pobre cachorro. Ele aceitou e tentei, sem sucesso, fazer contato com a moça que resgatou o animal. Neste intervalo, apareceu um outro rott, cuja família estava doando por estar se mudando para um apartamento. Bastou um telefonema e, no mesmo dia, Lampião, mudou-se para nossa casa. O dono veio trazê-lo, em companhia do filho, um miúdo pimpolhinho que, em pé tinha a altura do cachorro e uma intimidade com ele digna de admiração. Partiram menos de uma hora depois, com lágrimas nos olhos, deixando para trás um perplexo cachorrão e a recomendação de que o levássemos ao veterinário para verificar uma ligeira claudicagem da pata traseira direita, talvez conseqüência de um prego ou caco de vidro. Dito e feito. Mas o diagnóstico foi menos alentador do que uma simples ferida: um câncer ósseo que já havia lhe devorado um dos dedos e alcançava outros.
Muito comum na raça, este tipo de câncer é extremamente agressivo em cães. Há uma grande probabilidade de já haver se espalhado pelo corpo em metástase e a expectativa de uma sobrevida de, no máximo três meses, a base de analgésicos cada vez mais fortes. A possibilidade de cirurgia e quimioterapia foi descartada, por sua pouca eficácia nesses casos.
Nossa primeira decisão foi devolvê-lo ao dono. Não nos sentíamos preparados para lidar com um animal que não conhecemos bem, cujas reações, agravadas pelo sofrimento e a dor, podem ser inesperadas e  agressivas. Tentei falar com o ex-proprietário durante todo o final de semana. Somente conseguimos conversar na segunda-feira, quando soube que o número que eu tinha era do trabalho dele.
Enquanto isso, o cachorrão foi conquistando nossos corações. É um bebezão manhoso, carente por carinho e atenção e muito obediente. Às vezes, rosna para nós quando ameaçado ou ao sentir dor, mas basta um "não" contundente para que ele volte à sua condição submissa. Claro que evitamos nos pôr em riscos desnecessários. Colocamos-lhe uma focinheira quando vamos medicar a pata e o marido tem sempre consigo uma máquininha de choques que nunca precisou usar, mas que certamente iria inibir-lhe qualquer tentativa de ataque.
No feriado, o levamos até o córrego que passa ao fundo de nosso lote. Embora ele estivesse torturado pela unha, que acabou arrancando na noite seguinte, brincou como um filhote: correu, nadou, cavou e rolou na areia, um grande e feliz cachorro à milanesa. E mostrou-se já bem integrado à nossa matilha, não demonstrando nenhuma saudade de seu passado recente
, exceto quando vê o bebê de nossos vizinhos e lembra das crianças que haviam na casa onde ele vivia.
Foi o que faltava para nossa decisão: não vamos mais devolvê-lo a não ser que o dono o exija. Daremos ao nosso novo amigo o melhor final de vida possível: carinho, cuidados, alimentação de qualidade e companhia. Quando necessário, mudaremos os analgésicos. E, ao percebermos que eles não mais lhe permitam suportar a dor, lhe daremos um grande dia, em que ele fará e terá tudo aquilo de que gosta. Diversão, petiscos, o nosso amor... Depois, um forte calmante... esperá-lo adormecer entre nós. Para não mais voltar.
Não sei se é a coisa certa a fazer. Talvez devesse deixar na mão de Deus a decisão pelo momento certo de levá-lo ao Éden canino. Mas penso que este seria o final que eu gostaria de ter: um dia feliz... depois dormir, morrer. E mais nada.


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Na foto, Lampião depois de rolar na areia fazendo festinha para nós.