A Maconha da Velhinha

*LCdeAbreu - Jornalista atuando no estado de Roraima, extremo norte do país, na fronteira com a Venezuela e Guiana.

Uma das coisas que aprendi ao longo desse breve convívio de redação é que nem sempre se fala tudo. A experiência veio-me quando comentei com a Chefia de Jornalismo que um senhor lá do Uiramutã, pertinho da fronteira com a Guiana, dissera uma vez o quanto era comum o tráfico de drogas na região, ele inclusive afirmou que existia ali pertinho uma plantação de maconha. Meus olhos brilharam quando o senhor, metido a pauteiro, contou o fato, assim como também brilharam os olhos da Chefia, quando repassei as informações, mas pelo que me lembro o relato na redação encerrou-se bem assim:

- A gente pode checar isso, não é?

A Chefia respondeu com um simples balançar positivo de cabeça.

Dois dias depois, o choque:

- Amanhã você vai viajar! Vai lá no Uiramutã fechar aquele vt sobre drogas! Já combinei com a polícia federal para eles acompanharem.

Senti-me com um elefante nas costas. Não recuei, tão pouco me empolguei. Disse apenas:

- Tá bom.

Percebi ali que a pauta não tinha recebido a merecida atenção. A apuração foi aquele minuto “baré” ( meu, diga-se de passagem ) de conversa. Aquele um minuto de comentário infeliz.

Dia seguinte, partimos, eu, o cinegrafista Wagner Pessoa e o Motorista Moisés Sanches. Por telefone combinei com um Agente Federal para nos encontrarmos na Vila do Mutum, no município do Uiramutã, a poucos metros do território da Guiana. Era na Vila que morava o senhor que comentara sobre os traficantes. Chegando lá o amigo “pauteiro”nos recebeu alegre, ofereceu café, só que estávamos com pressa, precisávamos prepará-lo para a visita:

- Bem, sabe ... é o seguinte, o pessoal da federal tá vindo aí pra tentar flagrar aquela plantação de maconha, o senhor lembra?

O homem pulou longe, nem quis saber:

- Você comentou com eles sobre isso!? É perigoso falar dessas coisas! Imagina se os federais batem aqui pra saber alguma coisa?

Na hora pensei rápido e improvisei, quer dizer, menti:

- É o seguinte ... desconfio que os federais estejam vindo pra cá!

- Pra cá? – disse assustado o senhor.

- É – respondi. Parece que eles estão investigando esse negócio de maconha aqui na região. Eu vim na frente pra conversar com o senhor, pra avisar ! Não quero que o senhor se complique, tendo que falar qualquer coisa!

- Não, não ... vocês falaram sobre aquilo que conversamos?

- Não, nada disso, esses caras ficam investigando tudo. A gente veio só avisar!

- Eu não quero nada com polícia!

- Não, claro que não!

Justamente nessa hora a voz de um Federal conhecido rompeu a sala onde estávamos:

- Bom dia! E aí Luciano, como está?

O sangue gelou, respondi meio com ar de surpresa:

- E aí , tudo bem?

Conversamos um pouco, nossa equipe, o senhor e os federais. Papo informal, sem tocar no assunto das drogas. O Federal então deu o bote:

- Luciano! Vamos ali fora!

Lá fui eu. O Agente perguntou:

- E aí...é aquele cara que sabe a localização dos traficantes?

- Não, não... é só um conhecido nosso! O cara não tá aí não.

- Tem certeza? A gente pode dar um aperto nele!?

- Não! Nada de aperto! Ele não sabe de nada!

- Tá certo... mas então, como vai ficar?

- Eu vou só me despedir dele e a gente segue.

- Tá certo!

Minha cabeça girava. E agora? To mentindo para os dois lados e só tenho um caminho a seguir; continuar mentindo.

Aproximando-me do conhecido senhor, fui dizendo:

- Ei, não disse ...eles estão investigando esse negócio de drogas!

- Você falou alguma coisa de mim? Daquilo que conversamos daquela vez?

- Não, até porque nos encontramos por acaso! Eles (os agentes) até estranharam a gente tá aqui. Por isso eles me chamaram para ir lá fora, pra perguntar se eu sabia de alguma coisa. Agora...já que estamos aqui, o senhor sabe onde ficam esses maconheiros?

O velho trancou a cara e respondeu:

- Sei não! Não sei mesmo!

- Ta ok! Um abraço e tudo de bom!

Sobrevivi a um dos personagens. Faltavam os federais! Decidi então, demonstrar confiança:

- E aí, vamos? Perguntei.

- Pra onde? Disse o federal.

Limitei-me a dizer que na última vez que estive no Uiramutã, o meu “informante” tinha dado uma pista do local. O agente acreditou ou fingiu que acreditou, na verdade até hoje não sei bem ao certo. Nosso carro na frente, os federais atrás, três deles num veículo descaracterizado. Tínhamos que bolar qualquer coisa. Num acesso de loucura pedi que o motorista parasse o carro. Desci e na maior cara de pau perguntei a um jovem parado próximo a estrada.

- Ei, bom dia! Você sabe onde a gente pode comprar (levei a mão até a boca, como se estivesse fumando)!

Ele respondeu:

- Cigarro?

- Não! Sem ser cigarro, o outro?!

O jovem começou a rir...

- Ah... isso aí tem lá na frente! Tem uma cabaninha, pergunta lá que o pessoal sabe onde vende.

Na esperança de que ele realmente tivesse entendido o que perguntamos, assim com meias palavras, seguimos a indicação dele. Na verdade surgiu uma esperança! Enfim poderia dar certo essa história de localizar a maconha. Fomos em frente, foi quando nos demos conta de que estávamos muito “arrumadinhos” para compradores de maconha. Começamos um disfarce. Coloquei um boné, tirei a camisa pra fora da calça e acrescentei uma mochila nas costas. Pronto! Um típico comprador de maconha! Na hora de ir, fiquei com medo de “comprar” sozinho a droga, chamei o cinegrafista. O Wagner recusou, usando um artifício difícil de derrubar:

- Se eu for, quem vai filmar?

Intimei então, o motorista! O Moisés aceitou meio a contra gosto. Óculos escuros nele! Nada podia ser pior, um repórter desmiolado e um motorista evangélico disfarçados de compradores de maconha. E lá fomos nós!

Minutos de engasgo na frente de um “possível” vendedor, até descobrirmos que o “cara”, na verdade, vendia o produto numa vila mais a frente.

Decidimos mudar de tática e acrescentar mais um à dupla de “compradores de maconha”. O agente federal disfarçou-se também. Era assim agora, os três rumo ao local. Se tudo desse certo faríamos o flagrante da venda de entorpecente e a matéria sobreviveria a um começo desastroso.

Encontramos a casa indicada por alguns moradores como sendo o ponto de venda. Bati palmas! Estávamos eu, o agente federal e o motorista! O Wagner estava escondido no carro com a câmera ligada, pronto para registrar tudo. Foram necessárias umas quatro seqüências de palmas até que aparecesse alguém. Eis que surge a vendedora, uma senhora, beirando uns 70 anos, andando com dificuldade, a senhora aproximou-se e disse:

- Bom dia!

- Bom dia! Respondemos.

- Vocês querem alguma coisa?

Engasguei, entalei, gaguejei, e todos os “eis” que você possa imaginar. E beirando um infarto, perguntei, sem a menor esperança:

- É aqui que a gente compra erva?

Perguntei assim, na lata, ridículo. E por pior que pareça, a resposta foi inesperada, inusitada:

- É sim, vocês querem quanto?

O espanto foi geral, até no agente federal que estava conosco, percebi a surpresa. Sem saber o que dizer, falei o primeiro número que me veio à cabeça, sem ter a idéia exata do que representava:

- Ah...uns cinco quilos!

- Cinco quilos? Disse assim meio de supetão a senhora.

- É... tem?

- Vou ver se tem!

No momento em que a velha virou as costas, o agente puxou-me pelo braço e disse:

- Eu não vim aqui prender uma velhinha! Se essa senhora voltar aqui com cinco quilos de maconha? Hein? Vou ter que prender ela! E porque diabos você pediu cinco quilos de maconha?

- Ah, sei lá! Foi o primeiro número que me ocorreu! E eu não tenho culpa se é uma velhinha que vende!

No meio da conversa a senhora retornou, de mãos vazias e com a maior serenidade do mundo nos respondeu:

- Eu só tô com um pouquinho! Mas se vocês quiserem podem voltar depois. O meu filho pode atravessar o rio e trazer mais da Guiana

Era a confirmação! A venda era ali mesmo! Só que a doce senhora não tinha mais o produto na casa e a plantação na verdade ficava na Guiana. Os federais não podiam fazer nada! Estava fora da jurisdição deles. Nos despedimos da simpática velhinha com a promessa de retornar. Os federais seguiram o caminho deles, convictos de que precisariam investigar melhor o assunto. E nós da equipe, depois de mentir para todos os envolvidos na reportagem, aprendemos que quando mentimos uma vez, precisamos mentir vinte vezes mais para sustentar a verdade da primeira mentira.

Em resumo:

- A mentira é uma péssima pauteira!

LCdeAbreu
Enviado por LCdeAbreu em 06/06/2010
Código do texto: T2303731
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