NOVELAS - Onde está a sua qualidade?
A idéia para esta crônica me veio de um dos comentários que recebi na minha outra crônica, sobre o BBB 10. O comentário, que por sinal foi do qual eu mais gostei, criticava a minha presunção e ironizava a minha afirmação sobre a qualidade do trabalho dos atores globais. Até aí, tudo bem, mas o que me fez ter vontade de escrever a crônica foi a referência, ou até mesmo reverência, que esse comentarista fez a Paulo Autran. Esse que é um dos grandes nomes do teatro brasileiro, cujo nome é por si só patrimônio cultural. Que também fez história no cinema, com destaque para a sua marcante atuação no clássico Terra em transe, de Glauber Rocha. E que se aposentou das novelas por bastante tempo antes da sua morte. A partir daí, trarei uma espécie de “prós e contras” para as novelas. E ressalto que vou me referir quase sempre às novelas da rede Globo.
O mestre Paulo Autran costumava dizer que, se o teatro era a arte do ator e o cinema a arte do diretor, a novela era a arte dos patrocinadores. Foi por causa desse viés mercadológico das novelas que ele se afastou deste veículo, e não por causa da baixa qualidade que poderia existir em trabalhos televisivos. De fato, novela é uma faca de dois gumes: por um lado, pode contar com uma excelente equipe, com destaque para atores que fazem boas performances e autores que escrevem boas histórias; por outro, tem que atender obrigatoriamente aos seus “mecenas”, àqueles que a patrocinam. Volta e meia, muitos dos atores que ainda trabalham na emissora reclamam de certos “abusos” publicitários que ocorrem dentro das próprias novelas. Recentemente, na novela das 7, Tempos Modernos, o personagem Valvênio, o “nerd”, fez uma propaganda descarada sobre uma nova marca de carro dentro da novela, falando com a namorada e a sogra na saída do prédio Titã, quando observava o carro parado na rua. Isso foi só um exemplo do que ocorre cada vez mais freqüentemente dentro das novelas. Não bastam os intervalos que fatiam a novela geralmente em quatro pedaços, a propaganda tem que estar no próprio texto da novela, nas falas dos personagens. O merchandising já ganhou até espaço nos créditos finais de cada fim de capítulo de qualquer novela que se preze.
É impressionante ver como o texto que um autor escreve e como um ator que se preze podem se curvar assim tão facilmente às exigências da publicidade. Mas o engraçado é também a constatação que eu faço, neste momento, de que nenhum dos grandes atores da televisão faz cenas que envolvem tais “merchandisings”, ou nunca são os enunciadores da propaganda. Seria curioso, por exemplo, imaginarmos o Toni Ramos, no meio da novela, escovando os dentes e dizendo que o Close Up é a melhor marca de pasta de dente, que deixa os dentes brancos, e coisas do tipo. Enfim, deixando a brincadeira de lado, é impossível desvencilharmos a propaganda da novela, porque, como eu tinha dito, no outro parágrafo, a novela sempre carregou a propaganda a seu lado. No entanto, o mercado começou a invadir as novelas, a não respeitar o horário que lhe é devido, para ter maior sucesso. Talvez seja porque, com o advento do controle remoto, o espectador brasileiro tenha adquirido o cruel hábito de ignorar os intervalos, pulando de canal para ver coisas mais interessantes na TV. E, assim, quando a propaganda se faz dentro do bloco da novela, esse espectador arisco não tem escapatória, acaba sendo atingido por ela. Sem contar que há a famosa identificação entre os personagens e os espectadores - o chamado pacto de representação -, que faz com que vejamos os personagens da novela como seres reais, e iguais a nós; acabamos tendo predileção pelo personagem que mais se assemelharia ao que somos; e, se ele gosta de tal marca, isso é um indício de que também gostaríamos dessa marca.
Retomando Paulo Autran, inicio aqui a etapa dos elogios às novelas, já que o ator nunca desqualificou o produto televisivo, só desqualificou o sistema em que ele se insere, que desprivilegia, certamente, a arte do ator. O próprio Paulo Autran fez belos trabalhos em novela. Como não podemos esquecer a antológica cena de Guerra dos Sexos em que o personagem dele e a personagem de Fernanda Montenegro se envolvem num pastelão do café da manhã? Quem não viu a novela na época, ainda rememora no Video Show. E, aliás, Fernanda Montenegro é outro monstro do teatro, da mesma geração que Paulo Autran, e ela ainda faz novela. Ela está aí com Passione. É verdade que, ultimamente, ela só tem feito novelas do Silvio de Abreu, mas está aí, e isso é prova de que novelas não são de baixa qualidade. Sérgio Britto, que também é da mesma “trupe”, que acabou de lançar um livro sobre a sua história no teatro, fez as suas novelas também - participou de Pantanal e Xica da Silva. Ítalo Rossi, outro da “trupe”, recentemente despontou comicamente no Toma Lá Dá Cá, popularizando o bordão “Mara!”, com o seu personagem Ladir. Sem esquecer Natália Thimberg, que volta e meia está em alguma novela da Globo. Todos eles fizeram parte de uma das primeiras experiências “novelísticas” da TV brasileira, O Grande Teatro Tupi, um teleteatro inicialmente exibido pela extinta TV Tupi, e posteriormente apresentado pela TV Globo nos seus primórdios. Era “novela” ao vivo. Uma experiência que Manoel Carlos gostaria de recriar em alguma de suas novelas, e ele mesmo fez parte do Grande Teatro Tupi. O mais legal era que O Grande Teatro Tupi apresentava aos telespectadores peças de teatro das mais variadas, de grandes nomes nacionais e internacionais.
E neste ano a Globo completa 45 anos, e muito desses 45 anos de sucesso é devido às novelas, e à qualidade destas, já que nunca outras emissoras conseguiram barrá-la nesse quesito. O SBT tenta, a Bandeirantes tenta e a Record também, mas não tem jeito, a Globo é rainha no que se refere a novelas. Parece que alguma novela da Record chegou à façanha de roubar o ibope de alguma novela das oito da Globo, mas foi “fogo de palha”. A Globo exporta novelas para várias partes do mundo. O Video Show recentemente fez uma edição falando do que marcou a emissora nesses 45 anos de história, e falou das novelas. No entanto, acabou incluindo o famigerado reality show BBB como um produto de “qualidade artística”, que comeu 10 de todos esses anos globais de vida, mas as minhas críticas ao BBB estão na crônica anterior, e não vou perder tempo com isso agora. Temos então grandes artistas de televisão consagrados nas novelas, nomes que são referência nesse caso. Atores como Tarcísio Menezes e Francisco Cuoco, e atrizes como Glória Menezes e Regina Duarte, que, não por acaso, foram homenageados metalinguisticamente na novela Cama de Gato, em que os filhos da personagem de Camila Pitanga tinham como nomes Tarcísio, Glória, Francisco e Regina, e a homenagem aos atores foi revelada no último capítulo da novela, no qual o próprio Tarcísio e a própria Glória apareceram e travaram contato com os personagens que tinham os seus nomes.
No entanto, não podemos deixar de dar crédito aos autores das novelas. Talvez, os nomes mais incensados neste rol em todos os 45 anos de Globo sejam os de Janete Clair e Dias Gomes, que inclusive foram casados. Ambos escreveram peças de teatro antes das experiências televisivas. O próprio Dias Gomes ganhou uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. Janete Clair foi responsável por novelas como Pecado Capital e Irmãos Coragem. Dias Gomes fez novelas como O Bem Amado e O Espigão. E nos deu Roque Santeiro, um marco da telenovela brasileira. Baseada num texto teatral de autoria do próprio Dias Gomes, intitulado de O Berço do Herói, escrito em 1965. Na peça, Roque era um cabo desertor que tinha virado “herói” após ser dado como morto, funcionando como uma espécie de alegoria parodística do regime militar que assolava o Brasil. A novela, que tinha sido vetada por um longo tempo por causa da censura - sua estréia seria em 1975, mas só foi exibida em 1985 -, teve que trazer uma outra trama: Roque foi equivocadamente beatificado por conta de um evento de caráter “milagroso”. A sátira ao regime militar virou uma sátira religiosa. Mesmo assim, a história não perdeu o seu impacto, e deu ao telespectador brasileiro a oportunidade de exercitar agudamente o seu senso crítico. Hoje em dia, temos aí consagrados nomes como os de Manoel Carlos, Glória Perez e Walcyr Carrasco, além do já citado Sílvio de Abreu. É interessante fazermos uma pesquisa sobre as novelas de cada um deles, pois aí veremos as marcas registradas de cada um. Talvez, o mais peculiar de todos seja Manoel Carlos. As novelas sempre equivaleram aos romances de folhetim que se publicavam nos jornais do século XIX, e elas herdam todos os seus esquemas e artifícios narrativos. Basicamente, há um casal de protagonistas, que existe ou não desde o primeiro capítulo, que enfrentará muitos ou poucos empecilhos até ficarem bem resolvidos no último capítulo - o obrigatório “happy end” de toda novela. Porém, Manoel Carlos faz novelas que equivalem a livros de auto-ajuda. É uma mãe que se anula para ver a filha feliz, é uma leucêmica que se cura porque tem “garra” para vencer na vida, uma tetraplégica que consegue superar as dificuldades da sua condição, e por aí vai... Enfim, histórias comoventes que são coisas que podem acontecer na realidade. Daí as suas últimas novelas trazerem aqueles depoimentos de pessoas reais vivendo problemas reais ao final de cada capítulo. Para o bem ou para o mal, é bom que exista essa preocupação em levantar a auto-estima do brasileiro. A Globo faz questão agora de ressaltar a sua “responsabilidade social” através de uma propaganda auto-promocional que acabou de criar, e está rodando na sua programação nos intervalos que fatiam as novelas.
O problema é notarmos que existe uma imensa falta de criatividade desses autores. Toda novela de Manoel Carlos é sempre a mesma “lenga-lenga”. Glória Perez ainda é mais ousada, tenta mostrar coisas diferentes, mas tenta tanto que chega a incoerências absurdas - a sua última e premiada novela, Caminho das Índias, tinha indianos com costumes supostamente indianos, vivendo na Índia, mas falando português. Até aí, tudo bem, dava para ignorarmos este pequeno detalhe, mas eu parei de ver esta novela já no segundo ou primeiro capítulo mesmo, quando a personagem da Juliana Paes, indiana falante do português(?), que trabalhava em um call-center, atendia a ligação de um brasileiro, que, se não me não me engano, era feito pelo Alexandre Borges, falando inglês. A conversa entre os dois transcorreu em inglês, sendo que ele era um brasileiro que falava português, a mesma língua que absurdamente era falada por ela, mesmo sendo uma indiana. Essas incoerências me irritam. Essa coisa de fazer um filme sobre alemães nazistas, mas os atores serem americanos e atuarem falando inglês. Eu não consigo digerir isso, mas isso já pode ser o embrião de uma outra crônica e não vem ao caso. O que está salvando a Globo é a renovação de autores. João Emanuel Carneiro trouxe uma nova cara para as novelas, inovando, timidamente, mas inovando, com o grande sucesso de A Favorita. Particularmente, eu ainda prefiro a sua primeira novela, Da Cor do Pecado, em que a trama foi muito mais bem elaborada e interessante. Agora, temos Bosco Brasil, que tem me surpreendido com Tempos Modernos, uma novela inteligente e ágil, que sabe muito bem ser uma novela de “ação”, como toda novela das 7 é, mas ter um conteúdo razoável. Só a “galeria dos roqueiros” vale pela novela, porque traz roqueiros de verdade, com referências reais. Sinal de que o autor manja do negócio. Os filhos do “tiozinho do rock”, vivido pelo talentoso Leonardo Medeiros, se chamam Led e Janis, numa óbvia reverência a dois ícones do rock, Led Zeppelin e Janis Joplin, respectivamente. E vemos o “tiozinho” usando camisas do Ramones, e na sua loja de LPs usados vemos lá clássicas capas do rock, passando por AC/DC e The Doors. Sem contar o amigo dele, o Gaulês, interpretado com igual talento por Jairo Mattos, que tem uma loja de quadrinhos, na qual vemos gibis reais do Superman, do Hulk e do Homem de Ferro; e ele mesmo cita altas coisas, como do Spirit, clássico dos gibis de Will Eisner. Bem diferente daqueles pseudo-roqueiros das novelas da Glória Perez, que só se vestem de preto, falam algumas gírias, mas não há nenhuma referência/reverência a qualquer nome que seja do universo do rock’n roll. Olha, esse negócio de rock rende outra crônica, já estou planejando!
Caraca! Que “bagaça” é essa de falar de novelas! Cheguei a suar! Isso rende muitas crônicas, aqui foi só o começo. Tentei falar dos prós e contras, mas acho que dessa vez fui mais complacente com elas do que fui com os BBBs na outra crônica. Não tenho escapatória, encerro esta crônica com uma confissão - eu sou noveleiro! Claro que tem novelas às quais nem me presto a assistir, mas tem aquelas que prendem a minha atenção e tem aqueles capítulos ocasionais, que eu vejo só pra matar a curiosidade, ou sem curiosidade alguma vejo sem querer, porque janto com a TV ligada. Eu, mesmo sendo um intelectual, conhecedor de literatura e da grande arte, gosto de novelas. Confesso! E tem esse papo de que homem não vê novela, que novela não é coisa de macho, e isso é papo furado! E digo mais, esses machões que não admitem ver novela, que falam mal das novelas por falar, muitos deles adoram ver as novelinhas ao lado das namoradas ou esposas, e, de preferência, as novelas do Manoel Carlos, as mais chatas, as mais apelativas, as mais piegas. Enfim, o intelectual noveleiro aqui vai encerrando esta crônica, com muito a dizer ainda, mas guardando fôlego e munição para outras empreitadas. E espero que os autores das novelas saibam tirá-las da mesmice, e que as novelas sejam tratadas com mais respeito pelos intelectuais, porque elas sim são um produto massificado de relevância artística, ao contrário desses reality shows que pipocam por aí, pseudo-novelas com pseudo-atores fazendo pseudo-personagens. E salve Paulo Autran!