A volta de Alice a São Petersburgo
A tarde iria desabar a qualquer momento sobre o mundo.
Alice havia acabado de sair da catedral e agora se arrastava pela rua.
No alto, Gabriel observava os homens não mais com curiosidade e sim com uma certa antipatia. Essa gente não tinha nada de especial. O homem foi fabricado para morrer. Nenhuma de suas tentativas iria mantêlos eternos. O ser humano é cansativo.
Hora do Angelus.
A rua costumava ser tranquila. E no ar do dia, uma mistura de cheiro de peixe, que ninguém nunca soube de onde vinha e de Chanel número 5, de uma daquelas boutiques que insistem em impor ao homem um pouco de sonhos e dívidas eternas.
Alice se detem ante a vitrine e vê seu rosto. Nos pulsos muitas cicatrizes.
Gabriel se dependura no poste. (acende um cigarro).
O silência que poderia ser reconfortante, parecia um animal peçonhento prestes a vançar sobre um desavisado.
E lá no alto, no terceiro andar, contrariando as leis de proporção, o som do fagote se impôs sobre o som dos carros e do mundo.
Suas notas eram arremessadas predio abaixo, tocando uma melodia azeda.
Gabriel era e sempre foi um observador. Apenas. Essa gente cretina, criada para ocupar uma rocha flutuante no espaço, era tão óbvia...
A fumaça do cigarro...(anjos não devem fumar).
Alice se tornou presa da melodia. As amarguras se reconhecem e se tornam cúmplices. Como casais que dançam tango.
Nicolai, o fagotista, torna a música mais alta, a medida que as rugas em seu rosto se tornam mais dolorosas. Tem quem ache bonito sentir dor...Ou até, dizer que ama...
Nicolai ainda mantem seus sonhos trancados em uma caixa de metal. É a sua frustração que o move. Ele poderia ter sido muita coisa, mas não foi. Só pode manter de humano, sua eterna vocação para trair e seu desprezo... Nicolai sempre será um prisioneiro da caixa...
Alice deveria caminhar? Ficar? Morrer? Provavelmente, naquele momento em que o som envenenava sua alma, uma dúvida deve ter surgido: "Deveria viver para ver alguma coisa que não tenha visto".
É curioso que, quando finalmente resolveu seguir a rua e ver onde ela iria dar, até esboçou um sorriso. Sorriso de suicida profissional.
Gabriel voou atrá dela...
Passada a hora do Angelus, Nicolai atirou seu fagote do terceiro andar. Este se transformou em alguns pedaços. Decidiu aprender a tocar violoncelo. Até que suas mãos sangrassem.
Alice deu mais uma volta na praça em forma de G. A nota sol num violino distante, a romã que Perséfone segura numa cópia de pintura em um ateliê de Bairro...tudo tão óbvio...a arquitetura alterada por um segundo de sanidade.
Depois voltou tudo ao normal. Porque as coisa, não necessariamente, têm de fazer sentido para garantir o prazer medíocre de um imbecil mediano. Leitores de personagens são derrotados.
E somos projetado para a dor.