ESPELHO
Existe outro homem que também vive sob a minha pele. Há muito não ouvia falar dele, andava esquecido.
Hoje eu acordei com saudade dele; lembrei-me bem das suas feições e dos seus modos. Estivemos um pouco estremecidos, pois discordamos em algum ponto de vista; nada demais, coisa de amigos bem próximos.
Ao que tudo indica ainda está por aqui; conserva, magicamente, o mesmo olhar profundo e observador crítico, um coração sofrido e maltratado, mas de amor incondicional. Esse homem possui uma força descomunal, pois, arrasta diariamente uma enorme carga que a vida lhe impôs, contudo, sempre sorrindo e confiante, sem reclamar e uma enorme fé em Deus. Assim, desafia o destino que teima em desafiá-lo e travam diariamente uma grande luta.
Quem corre por gosto não cansa! Vive a apregoar, é o seu lema.
Hoje, que amanheci tocado pelas lembranças do que a minha alma já contemplou, participei a ele pequenas reminiscências e até algumas revoltas e insatisfações.
Por outro lado, acho que ele percebeu, sem concordar, o quão breve será sua vida (quase tanto quanto a minha) e que nesse momento que dura pouco demais para lembranças bobas, confidenciou-me, também, seu grande amor, não na forma de uma declaração ou de um nome de mulher, mas, na forma de seus atos verdadeiramente grandiosos.
Ah! Se algumas pessoas, parentes e amigos percebessem a grandeza desse homem, quanta dignidade ele possui, certamente se envergonhariam de tanta mesquinharia que levam consigo, assim, como dos valores pífios que agregam.
Ele contou-me das suas tarefas cotidianas, da sua hercúlea força para suportar e vencer as agruras da vida; eu lhe perguntei insistentemente como ele conseguia tanta força.
Ele sorriu e com os olhos brilhando, demonstrando uma satisfação que eu não conseguia entender e até me irritava, e me fez saber. Simplesmente sem dizer uma palavra, apenas com um gesto ele me mostrou sua família, mulher e filhos ainda pequenos. Então eu compreendi tudo; ali estava à roda motriz, a maior fonte geradora de energia vital. O tônico que fortalece a nossa vida. Família, a razão de tudo.
Entendi o sentido de tudo. A explicação daquele homem fez meus olhos marejarem.
Assim compreendi e num segundo passei em revista a minha vida tão medíocre. Lembrei-me de tudo que passei, de tudo que me fez melhor, de tudo que me serviu de lição. Compreendi que somos pequenos e ínfimos, dada a compreensão da existência e importância do outro, e principalmente da grandeza de Deus.
Com a mão a segurar o queixo, olhei para aquele homem especial, vi os seus lábios oscilantes, mas reconheci-lhe o modo muito particular de ver as coisas.
Olhou-me nos olhos, sorriu mais uma vez e se despediu com um meneio de cabeça.
Era cedo para ir, pensei em dizer-lhe. Mas homens assim não são comandados pelas sugestões dos outros.