Tati, Néia, Dhone & Mone

O romance seguia pleno naqueles dias de quase inverno de 1987 onde eu e minha companheira dividíamos o pequeno espaço de sua casa, uma simples habitação num bairro popular de nossa pequena cidade no interior da Bahia.

Conversávamos, amiúde, sobre nossas vidas, planos futuros, já que iniciávamos uma vida em comum, dando-nos novas oportunidades, cada um na sua, recorrentes que éramos de casamentos que não haviam dado certo.

Nossos dias transcorriam na frugal trivialidade de pessoas comuns que, pelo dia, trabalhavam e à noite recolhiam-se ao aconchego de seus lares para, depois do simples jantar, entremeados pelas conversas de como fora o dia de cada um e as novidades deste cotidiano, assistir ao jornal e as novelas, dormir e continuar tudo outra vez no dia seguinte e, assim, os dias passavam.

Entre uma frase ou outra de nossas conversas, minha companheira deixava evidente as suas saudades de suas filhas, fruto de seu casamento primeiro, e isto lhe deixava prostrada em suas tristezas, por não tê-las ao seu redor, vê-las, senti-las, tocá-las, coisas que só as mães entendem e sentem.

Minha companheira ainda exalava sua inocente adolescência quando teve seu primeiro filho aos dezesseis anos, inexperiente que era, completando sua prole antes mesmo de completar seus vinte e dois anos de idade.

Observando sua tristeza sempre que falávamos sobre nossos filhos (de meu casamento primeiro, sou pai de tres), instiguei-a a falar sobre seu desejo de ter suas filhas em nosso convívio, no que pude observar um reflexo de alegria resplandecer de seu olhar.

- Posso trazer minhas filhas para cá? - perguntou-me.

- Mas é claro que pode! - repondi-lhe.

- Mas, não é só uma não!

- Que sejam dez. Onde come um, comem dois, comem dez. É só fazer um pouco de economia.

- Voce não se importará? - perguntou-me com visível preocupação.

- Se for para sua alegria e tranquilidade, não vejo nenhum problema. Traga todas e vamos ver no que vai dar. - completei.

Dalí até a chegada das meninas, os dias passaram lentos e as ansiedades eram evidentes para ela, quanto que, para mim, a prudência e a serenidade foram constantes. Sem crises e sem abalos.

Passados alguns dias, pela tarde, vislumbro a chegada das quatro menininhas que, como numa pequena fila indiana, uma atrás da outra, aproximam-se com olhares curiosos, buscando identificar os novos arredores que comporiam o novo lar para todas elas.

Eu estava sentado à porta de casa quando a primeira a se aproximar de mim foi Néia que, com olhar curioso perguntou-me quem eu era.

Sendo ela a que mais fazia perguntas, considerei-a a 'porta-voz' daquela pequena comitiva que, daquele momento em diante, comporia a nossa família.

Seguida por suas irmãs, a próxima à se apresentar foi Dhone, que trazia um semblante do tipo 'não gostei de nada por aqui' e, por isso, e tempos depois recebeu o apelido de 'Rebelde Sem Causa' em alusão à uma música de rock popular da época.

Tati apresentou-se logo depois e pude notar sua quase alienação (no bom sentido), tipo, 'isso é tudo novo para mim', e por isso, foi-lhe dado o apelido de 'Desligada'. Mas de desligada, ela não tinha nada.

Por último, foi a vez de Mone. Caladinha, circunspecta, observadora e muito dengosa, bastava um olhar diferente e mesmo sem nada se falar desatava a chorar, atitude que pude notar com o passar do tempo. Era a mais frágil de todas, apesar de ser a mais gordinha.

Em ordem decrescente, Tati, Néia, Dhone e Mone, a caçulinha, passaram a fazer parte de nosso cotidiano e minha companheira era só alegrias e irradiava felicidades.

Com o passar do tempos, os papéis lá em casa se inverteram e enquanto eu, que por estar desempregado, ficava com a tarefas domésticas, minha companheira seguia todos os dias para o seu trabalho.

Café da manhã, lanchinhos, almoço, brincadeiras vespertinas, as meninas ocupavam seu tempo com tarefinhas e atividades de seus imaginários. Por vezes, eu tocava o meu violão com musiquinhas infantís e também contava-lhes histórias e contos de fadas e, assim, nossos dias se passavam. Mas, toda a felicidade não estaria completa se não houvessem as dúvidas e seus cuidados.

Minha companheira, a cada saída para seu trabalho, era constantemente abordada por uma ou outra mãe mais ciosa (?) que lhe inquiria sobre a minha presença em companhia de suas filhas.

- Amiga... como voce pode ir trabalhar tranquila e deixar suas filhas, mocinhas, na companhia de um homem que não é o pai delas? - perguntavam sempre.

- Não me preocupo não. Tenho plena confiança nele - respondia-lhes sempre.

Não obstante a firmeza da resposta, seu coração angustiava-se nas dúvidas e nos cuidados pelas filhas que ficavam em minha companhia durante todo o dia e, à tardezinha, já chegando a noite, ela retornava de sua labuta, exausta mas, ainda disposta a ouvir os acontecimentos de cada uma durante o dia.

Depois de me cumprimentar, eu, sujestiva e sabiamente deixava-as à vontade para conversarem. Afinal, aquele momento era muito importante para mãe e filhas.

- Filha... vou dar uma saída e me encontrar com a rapaziada para um papo, tá? - comunicava-lhe.

Acredito que com essa minha 'deixa', ela já entendesse que eu estava dando oportunidade para uma conversa entre ela e suas filhas e, também, para dissipar de sua mente, qualquer dúvida ou suspeitas de maus tratos ou outra intenção mais deplorável, conforme acintosamente, alardeavam as 'marocas' de plantão.

Assim, foram todos os dias de nosso convívio e, enquanto durou o meu desemprego, sempre encontrei momentos para distrair e ocupar as pequenas. Ora um passeio no parque, para que brincassem nos balanços, gangorras e escorregadores, momentos com músicas tocadas ao violão - Ciranda, cirandinha - Atirei o pau no gá te o tó

historinhas dos tres porquinhos, cinderela, chapeuzinho vermelho (o lôbo sempre levava a pior).

Foi nestes mágicos momentos que descobri a minha aptidão para a culinária. Desde um simples almoço a um bolo - de massa pronta - revelei-me um ótimo 'chef' e a platéia sempre aprovava quando pedia mais um pedaço.

As meninas também passaram a exercitar suas prendas domésticas, primeiro com a famosa recita do 'bolinho da vovó' que consistia em

massa rala de farinha e leite fritos no óleo - com muito cuidado, é claro e sob minha supervisão.

Fim do dia. Hora do banho. Todas, em fila, de duas em duas, para o pequeno banheiro e tomarem seus banhos. As maiores lavam as menores. Banho tomado, roupas limpinhas (eu também lavava e passava), todas se alimentavam e aguardavam a chegada da nossa heróica batalhadora - a mamãe.

Depois dos folguedos da noite, é hora de dormir e, todas, mais uma vez em fila, perfilavam-se em nossa frente para tomar nossas bençãos e, não sem antes de rezar, acomodavam-se em suas camas para dormir qual anjinhos.

Era comum e, durante as madrugadas, ouvirmos uma ou outra 'falar' durante o sono, resultado do acúmulo das 'atividades' de cada uma durante o dia. A mais 'faladora' noturna era Dhone que, por vezes até 'brigava' com as irmãs, impondo a sua razão.

Tudo isso já faz um bom tempinho, e hoje, as nossas meninas cuidam agora de suas próprias proles e maridos enquanto que eu e a Nalva, minha companheira, observamos o resultado de uma perseverança de doutrina e respeito.

Tatiana (Tati), Jucinéia (Néia), Edneide (Dhone) e Simone (Mone), hoje são esposas e mães e trazem dentro de sí o sentimento de respeito, amor e amizade, enaltecendo a batalha vitoriosa de uma mãe que venceu as barreiras das dificuldades para ofertar-lhes o melhor que podia dispor e, para este que escreveu esta crônica que, embora não tenha sido o pai biológico, foi pai na presença e nas ausências.

Nossa casa hoje não mais aquela pequena casa, acanhada, onde nos apertávamos para nos acomodar. Aquilo era até muito bom pois, enchia o ambiente com o calor humano de todos nós. Hoje, nossa casa é um pouco mais ampla e somente eu e a Nalva ocupamos os espaços internos e dos cômodos que a dividem mas, vez por outra, sempre temos a presença das meninas, agora acrescidas dos nossos pequenos netinhos.

Caio e Amanda, filhos da Tati com o Marcelo. Maria Clara, filha de Mone com o Tico. Néia e Afonso ainda não tem filhos e Dhone com o Ermeson cuidam dos dois filhos dos casamentos anteriores de seu esposo.

O tempo insiste em passar e meu violão agora está mudo. Já não mais conto histórias da carochinha mas, escrevo para que as lembranças fiquem como registro dos tempos em éramos felizes e sabíamos.

A felicidade continua.