Dos tempos, a lembrança...
Antigamente não existia despertador, as pessoas acordavam com o canto do galo. Do poleiro, era ele quem dava a ordem: “hora de levantar”, de abrir portas e janelas, cortar a lenha e acender o fogo do fogão que deveria queimar durante todo o dia. O canto do galo indicava, antigamente, que naquela hora o dia era iniciado.
Antigamente, bem antigamente, de manhã cedo, depois de debulharem os santos ofícios, ajoelhadas nos pés dos oratórios, as mulheres levantavam para fazer a massa de milho. Não, não existia a massa ensacada como hoje. Para se fazer esta massa as mulheres pegavam o milho seco, punha no moinho e moinha, toda manhã, depois molhavam um pano limpinho, porque antigamente não existia cuscuzeira, pegava um prato de ágata, molhava um pano, punha a massa mexida, acendia o fogão a lenha e esperava o pão de milho ficar pronto.
Os homens acordavam e madrugavam nos currais. Estavam lá, mascando o fumo a espremerem com força bruta as tetas das vacas até expelir a última gota de leite de dentro delas. E faziam aquilo atentamente e com tal zelo que chegava a ser prazeroso observar. Trabalho diário, de todas as manhãs. Pegaram as vacas pelo rabo ou pelos chifres, amarravam-lhes as pernas e o serviço era feito. Antigamente era assim, não existia o leite pasteurizado, industrializado, era leite natural, puro, do bom.
As crianças iam aos currais, os olhos cheios de remela, com o caneco na mão e açúcar, sem ainda terem escovado os dentes com a raspa do juá, porque naquele tempo não existia escova de dente macia ou creme dental para limpá-los. As escovam eram feitas com o rabo do cavalo ou com a bucha do coco, nem tomavam banho de bica para tirar do corpo a catinga do mijo da noite passada, porque não havia água encanada nem chuveiro, tomavam leite morno e tinham como doenças: quebranto, bucho inchado, piolho, garganta inflamada, ferida nos joelhos, febre alta ou lombriga.
Enquanto isso, as mulheres continuando os afazeres, iam aos terreiros despejar o milho para as galinhas cacarejantes, apanhavam os ovos, abasteciam ninhos das galinhas chocas para nascerem novos filhotes e chamavam-nas pelos nomes. Antigamente, cada galinha tinha um nome próprio, só delas, como tinha nome também, as vagas, os cachorros, os jumentos e as éguas. A cantarolar, se punham a enxaguar as roupas ensaboadas do dia passado, amaciadas no cacete e fervidas para retiradas das mazelas; ao estendê-las nos varais ou cercas, coloriam todo o terreiro e deixavam exalar o cheiro do anil. Carregavam água da cisterna para os potes, de latas na cabeça ou nos paus de lata. Batia a nata, fritava os ovos e esperavam a vinda dos homens com o leite para a família, junta, tomar o santo café da manhã.
Antigamente os homens contavam as novilhas, as ovelhas, os porcos e iam preparar as rações de cada um, encher as cocheiras de água limpa e despejar a ração. Lacravam os bules do leite, carregavam as carroças para irem às cidades e vilas e lugarejos vender o produto. Passavam em casa para o desjejum, pentearem os bigodes e vestirem camisa limpa. Lavavam as mãos nos tripés de antigamente, nos lava-pés e por a água de cheiro. Armavam-se com suas peixeiras e pegavam as capangas de guardar o dinheiro. Comiam se mastigar e sem perder tempo saiam para mais um dia de trabalho. Antigamente as pessoas davam duro para ganhar honestamente o pão de cada dia e palavra valia mais que dinheiro. Os filhos maiores já participavam da vida dos adultos. Antigamente não havia tempo para o ócio. Os ofícios eram passados de pai para filho.
As crianças ajudavam nos trabalhos, davam trabalho e cuidavam dos passarinhos presos nas gaiolas. Desde cedo se embrenhavam por dentro do mato fechado, tomavam banho de açude, caçavam os ninhos e pegavam os filhotes dos pássaros, desfaziam ninhos e quebravam ovos, mas não era por maldade não, era por curiosidade ou traquinagem. Antigamente as crianças já eram traquinas. Gostavam de brincar de médico entre primos e primas, às escondidas, e outras de fazer enxerimento.
As meninas ficavam em casa ajudando nos afazeres domésticos, desde cedo tinham de serem dadas as prendas do lar para arranjarem bom casamento. A cor do enxoval era róseo, cor de tranqüilidade, fragilidade e doçura. Ganhavam bonecas e brincavam de casinha. Muito cedo já tinham de brincar de bonecas de verdade porque as mais velhas já tinham de ajudar a mãe a cuidar dos irmãos mais novos. Aprendiam a cozinhar, bordar, fazer bolos, cuidar da casa e dos meninos. Tinham de ser obedientes e ter bons modos.
Os meninos se armavam de baladeira, corriam soltos no mato e pareciam ter asas. Voavam de norte a sul. O enxoval era azul, cor do céu, do mundo. Tinha desde cedo a aprender a exercer o poder. Brincava de cavalinho de talo, de domar o gado e derrubar bois, brincavam de boi de castanha com as castanhas dos cajus. Alguns gostavam de pião, de vê-lo rodar, de lascar o pião do outro em bandas, de comer olho do peixe, de rasteira, biloca e de fazer dinheiro em notas com carteiras secas de cigarro. Outros gostavam mesmo de brincar de roladeira, de apostar carreira e chulipa. De barquinho de papel em dias chuvosos.
Os de meio talo gostavam de ter pente no bolso e ficar vendo as meninas passarem e ficarem assobiando. Na brincadeira do passarás, gostavam de sentir a voz da menina já mocinha a falar no ouvido: “rugi ou batom?”. Gostavam de ter confeito no bolso e de irem à tertúlia matinê no mercado central. Chupavam dropes de hortelã e merendavam bolo Filipe com bananada, depois faziam concurso de arroto. Montavam a cavalo e gostavam de passear nas carroças só para impressionar as beldades da época.
Antigamente, as mulheres eram treinadas a obedecerem aos seus homens. Existiam as conversas de mulheres e as conversas de homens. Nas cozinhas falavam das novenas, beliscavam os filhos, tiravam-lhes os piolhos e os faziam tomar os malditos chás de pepaconha serenado no olho da goiabeira, o mastruz com leite para despregar o catarro preso nos peitos, as sopas de verdura machucadas para ganharem sustância. O lambedor de malva, a beterraba para criar leite e não criar anemia. Aqueles que estivessem acabrunhados, nos cantos da sala ou sem levantar da rede, estavam com quebranto e logo eram levados as benzedeiras para serem curados com a reza e o galho do pé de pião roxo. Perdiam os dentes cedo e logo ficavam banguelas. Moça aos vinte, coroa aos vinte e oito e aos quarenta já eram velhas.
Á noite, quando se apagavam as lamparinas, eram submissas aos maridos, tinham de satisfazer-lhes os desejos das carnes. Nas camas eram conduzidas. Algumas usavam lençóis especiais, com a abertura no orifício e não havia beijo de boca, conversa ou afagos, eram os depósitos dos desejos alheios e as barrigas inchavam e despejavam e inchavam novamente e não sabiam o que na verdade era o prazer. Existiam aquelas mais afoitas, que se despiam na intimidade, serviam aos seus homens com maestria, eram verdadeiras menestréis das noites curtas de ambos. Se enroscavam nos corpos e cantavam e se derretiam por seus homens.
Antigamente as mulheres não tinham sentimentos respeitados por ninguém, eram entregues aos seus maridos pelos pais como mercadoria e assim eram tratadas por toda vida. Os homens eram instintivos e tinham um desejo de posse sobre as esposas como se tinha pelas vacas, ovelhas e bens. Deitavam-se com elas para que as servissem por obrigação. Elas se abriam e eles as invadiam, defloravam, demarcavam seus espaços como se estivesse ferrando uma das cabeças de seu gado. Para estes, as mulheres não podiam gemer, não podiam ceder, não podiam ser mulheres... Os desejos mais fantasiosos iam buscar com as outras mulheres dos bordeis, dos bregas de beira de estrada. Existiam aqueles que ousavam, não pediam, mas conduziam e no outro dia não as encaravam, calavam-se e os diálogos não aconteciam.
Antigamente se dizia que os meninos eram presente das cegonhas e quando uma mulher ia parir, o pirraia era levado para casa da avó, madrinha ou parenta distante e a barriga da mãe era explicada como sendo barriga d’água. O corpo era objeto proibido, feio, desconhecido e tentador. A toalha da mulher, homem nenhum podia se enxugar e não era por questão de higiene não, era o receio de a mulher embuchar. Moça direita não podia deitar na cama de homem, nem ficar de conversa sozinha com tal ser. Beijar na boca era pecado mortal, caso acontecesse não podia comungar e tinha de procurar o padre para uma confissão e, Deus, Deus, dependendo do vigário, tome penitências. As vezes, eram tantos os padres nossos, tantas ave-marias que o cristão, realmente desistia de cometer tal pecado danado de bom.
A primeira menstruação acontecia aos vinte anos e as mulheres estavam de boi, sagravam feito vaca, estavam doentes e não podiam se levantar por alguns dias e não existia absorvente e tinham de usar pedaços de pano usados, lavados e guardados para um novo ciclo.
Os homens eram afoitos e logo que engrossavam a voz, apareciam os primeiros pelos, começavam a aparecer os primeiros fios do bigode tinham de ser iniciados, eram levados pelos pais as casas das damas, casas de diversão. Ali bebiam, dançavam e se deliciavam com as primeiras experiências de iniciação a vida adulta sentindo o desejo latente aflorando pelo toque da pele com a pele. Ou aproveitavam os escuros das noites e sem sentimento de culpa ou receio, afogavam-se nos abate das jumentas. E nos relinchos do momento sentiam-se poderosos, machos, realizados. E essas experiências, muitas vezes, era o esperado por esses homens pelas suas esposas.
Antigamente, quando os hormônios afloravam e os dois não agüentavam, fugiam nos lombos dos cavalos, nos varões das bicicletas e tinham de casar par lavar a honra da família. Não tinham nada, não eram ninguém, mas moça desavergonhada o pai não mais queria de volta a casa.
Antigamente acontece na mente da gente como tempos de uma vida que não se volta mais, embora esteja vivo e presente na memória, na vida, na história... Antigamente se podia viajar nos cavalinhos dos carrosséis e se imaginar sendo um super herói ou algo parecido. Nos tempos atuais, antigamente é sempre tempos de recordação, de aprendizagem e saudade de tempos que o homem desenvolvia vida para que no hoje, o homem pudesse usufruir sem remorso, sem sofrimento sem falta de paz.
Como antigamente, pego minha viola e vou contar em outra freguesia sem esquecer-se de sempre poder olhar para trás.